
Com o crescimento exponencial do consumo de dispositivos eletrónicos, o chamado “e-waste” é uma realidade global e… preocupante, em parte devido ao mercado paralelo que se aproveita dele.
O mercado paralelo faz com que milhares de toneladas de equipamentos eletrónicos em fim de vida sejam desviadas, todos os anos, do circuito formal da reciclagem. Esta prática (que mencionámos na parte final deste artigo) implica graves prejuízos para a saúde pública e para o ambiente, já que estes aparelhos são tratados sem que seja acautelada a sua descontaminação.
O Electrão, entidade que gere este tipo de resíduos em Portugal, refere que apenas 22% dos equipamentos elétricos terão sido devidamente recolhidos e reciclados em 2022, o que corresponde a 62 mil milhões de dólares em recursos que não são aproveitados e que vão contribuir para aumentar a poluição, com consequências graves para a saúde pública e ambiente.
Outras organizações apontam números relativamente parecidos (os dados da Statista falam de apenas 17% de lixo eletrónico reciclado corretamente), o que significa que este é um problema global e sério, pois, a maioria do “e-waste” não é tratado corretamente e acaba no mercado negro.
A Rede de Ação de Basileia (BAN – Basel Action Network) iniciou um projeto de rastreio em 2014 para descobrir o que realmente acontece quando os consumidores enviam dispositivos que já não querem para recicladores de resíduos eletrónicos.
Os membros da BAN colocaram localizadores GPS no lixo eletrónico, acabando por descobrir que os dispositivos que deveriam passar pelos canais adequados nos EUA e no Canadá acabavam por ir parar ao estrangeiro. Uma empresa de reciclagem de lixo eletrónico sediada nos EUA, a Total Reclaim, falsificou centenas de documentos para encobrir uma operação maciça em que tinha enviado mais de 8 milhões de libras de monitores de ecrã plano com mercúrio para Hong Kong, onde os relatórios da EPA mostravam que os trabalhadores corriam o risco de envenenamento.
No Canadá, estavam a ocorrer factos semelhantes. Um relatório de 2018 mostrou que alguns dos resíduos eletrónicos enviados para recicladores de eletrónica e locais de recolha de confiança acabaram no Paquistão e na Ásia, incluindo a região dos Novos Territórios em Hong Kong. A área tornou-se um centro global de tráfico e contrabando de resíduos eletrónicos, onde trabalhadores sem documentos estão envolvidos na decomposição grosseira e prejudicial de equipamentos eletrónicos.
Como funciona o mercado negro dos resíduos eletrónicos?
A empresa canadiana Quantum Lifecycle explica que em muitos casos, a falta de supervisão governamental é o que permite a continuação de operações pouco éticas de resíduos eletrónicos. A extração de materiais do lixo eletrónico representa uma oportunidade para muitas partes estrangeiras, sem documentos, ganharem muito dinheiro. Explica a Quantum Lifecycle que no Gana, por exemplo, são importadas anualmente mais de 150 mil toneladas de produtos eletrónicos documentados, embora se espere que o número seja mais elevado, uma vez que o comércio ilícito de descargas digitais é lucrativo para os habitantes locais e muito mais barato para os exportadores do que a reciclagem adequada dos dispositivos.
A Quantum Lifecycle diz ainda que em países como os EUA, é legal exportar bens descartados para outros países se estes puderem ser reutilizados ou renovados. No entanto, o lixo eletrónico é frequentemente enviado para África ou para a Ásia sob o falso pretexto de que será reutilizado, quando, na realidade, estão incapazes de serem reutilizados. Os resíduos são depois desviados para o mercado negro, disfarçados de bens para evitar os custos da reciclagem legítima.
A China, o maior criador e importador de resíduos eletrónicos, é particularmente problemática. A Quantum Lifecycle refere que para resolver a questão da compilação de resíduos eletrónicos e outras descargas, em 2020, o Presidente chinês Xi Jinping proibiu a importação de resíduos. “No entanto, Hong Kong tem conseguido explorar lacunas para importar resíduos eletrónicos de outros países e revender o lixo a outros recicladores informais sem qualquer supervisão do governo da China continental, importando cerca de 1.000 libras de resíduos eletrónicos diariamente. Os trabalhadores sem documentos continuam a ganhar dinheiro com o processamento de resíduos eletrónicos sem ter em conta o impacto ambiental. Muitos deles trabalham por conta própria e correm o risco de contrair doenças causadas pela exposição a materiais tóxicos, ao mesmo tempo que prejudicam os ecossistemas locais”, afirma a Quantum Lifecycle.
Em Portugal, muitos equipamentos elétricos de grandes dimensões, que são colocados na via pública para serem transportados pelos serviços municipais, acabam por ser desviados do circuito oficial antes da chegada da viatura da autarquia.
E ao serem desviados do circuito oficial, o perigo de contaminação para o ambiente é total.
Para dar resposta a este problema e evitar que um frigorífico, por exemplo, que é colocado na rua para ser recolhido pelo município acabe nas mãos do mercado paralelo, tem havido algumas iniciativas em que apostam na recolha porta a porta. Seis concelhos da Área Metropolitana de Lisboa dispõem de um mecanismo destes: Almada, Lisboa, Loures, Moita, Odivelas e Seixal. Os resultados têm sido positivos.
Este serviço pretende, ainda, colmatar algumas lacunas que se verificam ao nível da chamada “logística inversa”, ou seja, quando é recolhido um equipamento usado na compra de um novo. Possibilita, por outro lado, travar a tendência de acumulação de equipamentos elétricos.
As recolhas porta a porta permitem garantir que 99% dos equipamentos estão completos, o que significa que todos os componentes nocivos para o ambiente podem ser eliminados em segurança em unidades especializadas. Esta prática promove, também, a redução de custos ambientais e de tratamento.
O 4º relatório “Global E-waste Monitor”, produzido pela Organização das Nações Unidas afirma que se os países conseguissem elevar as taxas de recolha e reciclagem de resíduos eletrónicos para 60% até 2030, os benefícios – incluindo a minimização dos riscos para a saúde humana – excederiam os custos em mais de 38 mil milhões de dólares.
Recursos valiosos, que a União Europeia já identificou como matérias-primas críticas, essenciais para a transição ecológica e digital, no valor de vários milhões de dólares, são desperdiçados, queimados ou colocados em aterros em todo o mundo. Atualmente, apenas 1% de materiais raros é proveniente da reciclagem. Este é um cenário que a Europa pretende mudar, o que pressupõe aumentar os níveis de reciclagem. E isso também passa por cada um de nós.