A polémica exploração de lítio em Covas do Barroso, Vila Real, saltou para o grande ecrã, na perspetiva dos movimentos contestatários do projeto e ganhou direito a entrar no mediático Festival de Cannes.
O Festival de Cinema de Cannes começou. Na 77ª edição, oito filmes com assinatura de portugueses fazem parte do certame: dois integram a seleção oficial em competição; um integra a “Cannes Premiére”; quatro figuram na “Quinzaine des cinéastes”; e uma curta metragem portuguesa consta do programa da “Semaine de la Critique”.
Os dois que competem na competição oficial são “Grand Tour”, de Miguel Gomes (longa metragem), e “Bad for a Moment”/“Mau por um Momento”, de Daniel Soares (curta metragem).
“Miséricorde”, de Alain Guiraudie, uma coprodução entre França, Espanha e a produtora portuguesa Rosa Filmes, de Joaquim Sapinho, é o que disputa a secção “Cannes Première”.
Na “Quinzaine des cinéastes” (“Quinzena dos cineastas”), programa independente não competitivo que vai para a sua 56ª edição, há duas curtas-metragens (“Quando a terra foge”, de Frederico Lobo, e “O jardim em movimento”, de Inês Lima) e duas longas-metragens com assinatura nacional (“A Savana e a Montanha”, de Paulo Carneiro; “Algo viejo, algo neuvo, algo prestado”, de Hermán Rosselli, uma coprodução entre a Argentina e Portugal, com a Oublaum Filmes, de Ico Costa).
Embora “Grand Tour”, de Miguel Gomes, seja o grande destaque (é a primeira obra portuguesa candidata à Palma de Ouro nos últimos 18 anos), há uma película que merece a nossa atenção por ser um documentário ficcionado, em que se mistura a realidade com ficção, a partir de um tema polémico da atualidade.
O filme é “A Savana e a Montanha”, de Paulo Carneiro, que aborda a luta dos habitantes de Covas do Barroso, Vila Real, contra a exploração de lítio na região.
A longa-metragem é apresentada como uma ficção, sobre uma comunidade que decide unir-se para expulsar uma empresa estrangeira que quer construir uma mina de exploração de lítio a céu aberto na sua aldeia.
Perante esta ameaça iminente, a comunidade decide organizar-se para a expulsar das suas terras.
Este filme, em formato western, inspira-se nesta recusa e na luta das gentes de Covas do Barroso contra um inimigo forte.
Este “western social” é, assim, uma encenação de uma luta real de associações locais e ambientalistas de Covas do Barroso e de Boticas, contra o projeto da empresa britânica Savannah Resources.
Numa encenação de um faroeste, a população mobiliza-se munida com as armas de que dispõe – tratores, enxadas, carros de bois, cantigas de protesto.
Paulo Carneiro, que vive em Lisboa, mas conhece aquele território, onde já rodou o documentário de pendor biográfico “Bostofrio, où le ciel rejoint la terre” (2018), decidiu pegar na câmara e juntar-se àquela luta.
Em entrevista à agência Lusa, Paulo Carneiro explica que começou por fazer “uma espécie de documentário”, mas acabou por envolver os habitantes na escrita de uma ficção para que eles concretizassem aquilo que não conseguiram ainda na realidade, impedir o projeto mineiro.
“Há um momento em que eu digo ‘Vamos fazer um filme, todos juntos; eu vou estar aqui, isto não vai ser fácil, mas querem que isto aconteça?’ E eles aceitam. A partir deste momento não se pode voltar atrás: Quando se entra na luta não se sai da luta. E nós, com o cinema, usamos o cinema como arma dessa luta. A verdade é que nunca ninguém desistiu e o filme existe”, afirma Paulo Carneiro, à Lusa.
No filme entram algumas das pessoas que têm dado a cara contra o projeto da Savannah Resources, como a presidente da Comunidade Local dos Baldios de Covas do Barroso, Aida Fernandes, Maria Loureiro e Carlos Libo, que interpreta músicas de protesto.
“É um bocado difícil de acreditar que o cinema pode mudar alguma coisa, mas pelo menos que dê visibilidade e que faça com que se fale sobre o que se está a passar, que dê voz ao que acontece neste momento no terreno”, aponta à Lusa, ele que irá pessoalmente a Cannes, acompanhado de alguns dos habitantes de Covas do Barroso.
“Covas do Barroso é uma aldeia vizinha de Bostofrio, onde nasceu o meu pai e onde fiz o meu primeiro filme, ‘Bostofrio, où le ciel rejoint la terre’. Esta proximidade geográfica e afetiva levou a que, desde 2018, me mantivesse atento às notícias acerca de negócios pouco claros com vista ao eventual desenvolvimento de uma exploração mineira na região, por parte da Savannah Resources. Foi sobretudo pelo povo e pelas atividades ancestrais que florescem em Covas do Barroso que decidi juntar-me à luta pela defesa deste modo de vida. O cinema tem uma responsabilidade de envolvimento a que não posso fugir. Nos meus filmes, procuro estar ao lado das pessoas, sem me reger por políticas económicas ou especulatórias de quem não conhece ou vive o território”, aponta o realizador.
“A Savana e a Montanha” tem estreia na “Quinzena de Cineastas, que decorrerá de 15 a 25 de maio”, em Cannes, onde serão feitos contactos para a sua distribuição internacional, enquanto se planeia também a exibição em Portugal, numa primeira apresentação em Covas do Barroso, para a população local, ainda sem data anunciada.
A presença de “A Savana e a Montanha” no Festival de Cannes acentua, assim, a relevância do cinema como meio de amplificação de questões sociais e ambientais, permitindo ainda dar visibilidade internacional a lutas nacionais.
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