
Enquanto toneladas de alimentos são desperdiçadas todos os dias, Espanha avança com uma lei para travar o problema — e Portugal continua à espera.
Num mundo em que quase 1/3 de todos os alimentos produzidos acaba por ser desperdiçado, combater o desperdício alimentar deixou de ser uma questão de escolha individual para se tornar num imperativo coletivo. Globalmente, estima-se que mais de 1,3 mil milhões de toneladas de alimentos são desperdiçadas anualmente — o suficiente para alimentar cerca de dois mil milhões de pessoas.
A urgência desta questão tem levado diversos países a adotar medidas firmes. Espanha, por exemplo, deu recentemente um passo significativo ao aprovar legislação específica para reduzir o desperdício alimentar, responsabilizando todos os intervenientes da cadeia alimentar. Por outro lado, Portugal ainda não adotou uma lei com a mesma abrangência, mantendo a temática dependente de iniciativas pontuais e políticas dispersas.
Espanha dá o exemplo
A nova legislação espanhola define as obrigações dos operadores da cadeia alimentar, desde a produção até ao consumo final. Um dos pilares da lei é o reconhecimento de que o desperdício alimentar é uma consequência de sistemas alimentares ineficientes. As causas vão desde falhas no planeamento e práticas agrícolas desadequadas, até comportamentos de consumo negligentes.
A lei espanhola estabelece sanções para quem não colabore na quantificação do desperdício alimentar, que podem ir de advertências a coimas de até 2.000 euros. Em casos mais graves, a penalização pode escalar até 500.000 euros. A repetição de infrações transforma uma contraordenação grave numa muito grave, com consequências mais severas.
Além do quadro sancionatório, a legislação promove uma lógica de economia circular e de justiça social. A motivação do governo espanhol assenta num imperativo ético: reduzir o desperdício alimentar não é apenas uma medida ambiental ou económica — é também uma questão de justiça.
A construção desta lei envolveu amplamente a sociedade civil e os setores económicos, através de fóruns participativos em várias regiões do país. O resultado é uma legislação com 18 artigos divididos em seis capítulos que abordam desde a racionalização das datas de validade até medidas de boas práticas e instrumentos de promoção.
Entre as medidas concretas que a nova legislação espanhola implementa, destaca-se a obrigatoriedade de todos os operadores da cadeia alimentar — incluindo produtores, distribuidores, retalhistas e o setor da restauração — desenvolverem planos de prevenção de perdas e desperdícios alimentares. Estes planos devem identificar as causas do desperdício e propor soluções viáveis técnica, ambiental e economicamente.
Além disso, os estabelecimentos de restauração são agora obrigados a oferecer aos clientes a possibilidade de levar para casa os alimentos não consumidos, utilizando para isso recipientes reutilizáveis ou recicláveis, sem custos adicionais.
No setor retalhista, os supermercados devem promover a venda de produtos com datas de validade próximas ou considerados “feios”, ou seja, com imperfeições estéticas, desde que ainda em condições de consumo. A lei também incentiva a comercialização de alimentos de época, de proximidade e ecológicos, bem como a venda a granel. Para reforçar a consciencialização, as administrações públicas devem promover campanhas educativas sobre consumo responsável e apoiar a criação de modelos de negócio inovadores focados na reutilização de excedentes alimentares.
Portugal: um atraso difícil de justificar
Apesar de partilhar com Espanha uma realidade alimentar e social semelhante, Portugal ainda não dispõe de uma legislação robusta dedicada ao combate ao desperdício alimentar. Existem iniciativas louváveis, como o aproveitamento de excedentes por instituições de solidariedade e projetos de sensibilização, mas a ausência de um enquadramento legal forte significa que grande parte do desperdício continua invisível e impune.
Esta lacuna é particularmente preocupante quando se considera o impacto do desperdício alimentar no país. Segundo dados da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV), estima-se que Portugal desperdice mais de um milhão de toneladas de alimentos por ano. Além do impacto ambiental (nomeadamente nas emissões de gases com efeito de estufa, consumo de água e degradação do solo), este desperdício representa uma perda económica de centenas de milhões de euros e um insulto ético perante as milhares de famílias em insegurança alimentar.
Um apelo à ação coletiva
A luta contra o desperdício alimentar deve ser transversal e envolver toda a sociedade: consumidores, produtores, distribuidores, setor público e entidades privadas. Reduzir o desperdício é proteger os recursos naturais, valorizar o trabalho dos agricultores, aliviar o impacto climático e construir um sistema alimentar mais justo e eficiente.
Espanha pode, por isso, ser um modelo inspirador para Portugal, desafiando o país a criar uma legislação que vá ao encontro do “imperativo ético” de reduzir o desperdício alimentar, um princípio que deve ser orientador de políticas públicas, da ação empresarial e dos hábitos individuais. Porque cada alimento desperdiçado é uma oportunidade perdida — para o planeta, para a economia, e para a dignidade humana.
