A Rússia, os Estados Unidos e a Ucrânia chegaram a acordo sobre a situação no Mar Negro e a suspensão dos ataques às infraestruturas energéticas de ambos os países, mas ainda não passaram à prática devido às numerosas divergências e leituras diferentes dos documentos acordados. Vladimir Putin parece apostar no prolongamento do conflito a fim de conseguir impor o seu poder a uma área cada vez mais ampla da Ucrânia. Daí o Kremlin exigir sérias contrapartidas.
Diferentes leituras dos acordos
Ainda não se compreende ao certo em que data entram em vigor esses acordos. O presidente ucraniano, Volodomyr Zelensky, afirmou que os acordos começaram a vigorar na passada terça-feira, mas Putin considera que a moratória sobre os ataques contra alvos energéticos entrou em vigor no passado 18 de Março, dia da conversa telefónica de Trump com Putin, e o cessar-fogo no Mar Negro só irá ter início se for “restabelecido o acesso ao mercado mundial das exportações de produtos agrícolas e adubos, reduzidas as despesas com seguros marítimos e alargado o acesso a portos e aos sistemas de pagamentos para essas transações”. Segundo Serguei Riabkov, vice-ministro russo dos Negócios Estrangeiros, os Estados Unidos e a Rússia não chegaram a acordos concretos sobre a iniciativa do Mar Negro. Eles foram abordados “nos traços mais gerais”, “o trabalho continua”.
Os ucranianos consideram, por sua parte, que a navegação de navios de guerra russos no Mar Negro Ocidental constitui uma ameaça à sua segurança e chama a si o direito de autodefesa. Este ponto não está fixado no comunicado da Casa Branca sobre as conversações dos EUA com a Rússia.
Entretanto, são praticamente diárias as queixas mútuas de que o outro lado está a violar os acordos. Por isso fica-se com a impressão de que esses documentos não sairão do papel e a guerra poderá continuar.
Esta realidade contrasta claramente com as constantes declarações optimistas do presidente norte-americano sobre o “grande progresso” no processo de paz e com a sua tolerância face à recente declaração de que Putin atrasa o tempo, justificando isso com o argumento: “Eu também faço isso”.
Situação real
A realização dos primeiros acordos tem grande importância para as futuras conversações sobre o cessar-fogo e sobre o fim da guerra na Ucrânia. Além disso, poderá abrir caminhos no que respeita a novos acordos entre Washington e Moscovo.
Trump tem pressa de pôr fim à guerra na Ucrânia e propõe o seguinte esquema para: cessar-fogo pela linha da frente e, depois, conversações sobre um tratado de paz que ponha fim ao conflito.
Kiev aceitou essa proposta ao apoiar a proposta de Trump sobre os 30 dias de cessar-fogo. Porém, é de sublinhar que, antes, os ucranianos se manifestavam contra isso e só aceitaram a proposta sob forte pressão dos Estados Unidos e em troca do reinício do fornecimento de armas americanas.
Se Putin não concordasse com a iniciativa de Trump, seria acusado de não querer pôr fim à guerra. Por isso, decidiu aceitá-la, mas com condições: suspensão do fornecimento de armas à Ucrânia e da mobilização. Claro que Zelensky se recusa a aceitar as propostas russas.
Aliás, entre Zelensky e Trump há uma forte divergência entre como tratar com o ditador russo. O primeiro considera que os norte-americanos devem deixar de utilizar a táctica da “cenoura e do bastão” e recorrer apenas ao “bastão”, ou seja, a novas sanções se o cessar-fogo não for respeitado.
Os dirigentes norte-americanos optam pela “cenoura” porque pretendem um cessar-fogo rápido e receiam que a política do “bastão” possa levar ao agravamento das relações entre a América e da Rússia. As “cenouras” poderão ser a suspensão da ajuda militar à Ucrânia e o levantamento, parcial ou total, das sanções contra o Kremlin.
No que diz respeito à suspensão dos ataques contra alvos energéticos, constata-se também divergências na leitura do acordo. O Ministério da Energia da Ucrânia afirma que a lista publicada por Moscovo não inclui entre esses alvos os que estão ligados à extracção de petróleo e o gás.
A forma como irá ser realizada a “Iniciativa do Mar Negro” e a “suspensão dos ataques a alvos energéticos” poderá servir de ensaio para o cessar-fogo na Ucrânia, mas, a julgar pela sua realização prática, ainda estamos longe de ver russos e ucranianos sentados à mesa das conversações sobre o fim da guerra.
“Terras raras”
Entretanto, as conversações entre a Ucrânia e os Estados Unidos sobre as “terras raras” parecem ter chegado ao fim e foi revelado um documento que, a ser realizado, colocará a exploração de todos os minérios sob controlo norte-americano, incluindo o petróleo e o gás. Trump opta pelo colonialismo mais descarado em relação à Ucrânia e Zelensky pouco tem a fazer.
P.S. Numa entrevista à Eurovision News, o presidente ucraniano disse que Vladimir Putin só tem medo de duas coisas: da “desestabilização da sociedade” e de “perder o poder”. No entender de Zelensky, assim que o presidente russo morrer, “tudo termina”, nomeadamente a guerra na Ucrânia.
Estou de acordo com os medos de Putin, mas, quanto à “morte de Putin”, considero que ela poderá aumentar ainda mais a violência da política externa russa. Existem fortes possibilidades por ele vir a ser substituído por alguém ainda pior. Basta olhar para os que rodeiam Putin.
José Milhazes, jornalista e historiador