
As restolhas de aveia e de trigo estavam iluminadas pelo sol rasante que se punha ao lado da Serra de Pinhovelo e a Gracinha, com uns dez anos a tomar conta de nós, o Zé, o Beto e eu, tínhamos sido chamados da varanda para irmos lanchar. Passávamos a linha de caminho de ferro que era tangente às casas e entrávamos no pátio da Estação de Fomento Pecuário, familiarmente chamada “a pecuária”. Era um mundo todo, ali: à volta havia paredes de granito, as casas dos empregados e a do director, a que se acedia por umas escadas, o cabanal onde se abrigavam o tractor e as máquinas, os estábulos com os animais de cobrição (um charolês enorme sobre o qual um dos tratadores nos tinha colocado, à vez, às cavalitas!) e as vacas, as ninhadas de pintos com o moderno de terem uma lâmpada de aquecimento suspensa e um pequeno comedouro de zinco que os obrigava a uma formação lado-a-lado. O cheiro da silagem. O rebanho tinha ficado ainda no campo de onde viéramos. Subimos as escadas a correr e a senhora dona Luisete, a mãe da Gracinha e do Zé, tinha à nossa espera torradas com doce de cereja, copos de leite e fatias de bolo. O Pai não estava. O Dr. José Maria da Silva Lobo era também Presidente da Câmara, além de Director da Estação de Fomento Pecuário. Eu sabia que ele era Médico-Veterinário, o segundo que eu conhecia na minha vida com a consciência de o ser.
Porque o primeiro tinha sido o Dr. Botelho, pai da Bli, do Fernando e do João, que faziam grupo com as minhas irmãs e com o meu irmão Carlos, mas não comigo, pela diferença de idades. Contudo, o Dr. Botelho estava bem presente na minha vida: eu escutava-o atentamente nas suas conversas com o meu Pai na Estalagem do Caçador, a sua voz grave de baixo, a careca inconfundível, olhar perscrutador e nariz de águia, as opiniões, que me lembro de serem muito consideradas, sobretudo acerca de música clássica. Era o maior melómano da nossa vila e um piano que mandara vir tinha estado durante meses, para nossas delícias, em nossa casa, a aguardar que houvesse espaço condigno na sua. O Dr. Botelho era o Veterinário Municipal, inspeccionava as rezes e a carne no matadouro e nos talhos, o peixe que vinha de combóio e de camioneta para a peixaria e para as peixeiras ambulantes, os ovos que se vendiam um pouco por todo o lado. Vacinava os cães. Dava consultas a algumas emergências e vacinava/desparasitava alguns gados. Na realidade, superintendia a tudo isso com olhos inteligentes, ar sonhador e mãos nos bolsos da bata, porque em todos estes trabalhos tinha os ajudantes, alguns pagos pela função oficial e outros a que pagava ele. Além do seu ordenado camarário, tinha ainda um complemento dumas aulas de matemática que dava no ciclo preparatório ou no colégio, não sei bem. O que sei bem é que a mim e a uns colegas meus deu explicações de geometria e matemática durante meses ininterruptamente, pro bono, às quintas-feiras à noite, exceptuando a duma certa quinta-feira, semana e meia depois da Páscoa de 74, em que aparecemos, mas a Senhora Dona Maria Augusta, à porta, nos disse que não iria haver estudo nessa noite porque o nosso Dr. Botelho há horas que não saía de diante da televisão. Uma semana depois retomou as explicações e a sua normalidade na vida foi importante testemunho para todos nós.
Todos os veterinários da altura tinham ideias, alinhamentos e atitudes políticas de que não abdicavam. O tabuleiro político de Trás-os-Montes era cheio de peões que mudavam de casas e de cores nesse tumulto social dos anos sessenta e setenta e em que as figuras principais, reis e rainhas, bispos, cavalos e torres, também se movimentavam, não segundo as regras do xadrez, mas segundo as da política nacional e as da consciência, ou a falta dela, de cada um. Havia vários jogadores a movimentar as peças, mas sem dúvida que o mais activo era o Eng.º Camilo de Mendonça, com o qual todos os Veterinários da nossa região, de forma mais chegada ou mais alérgica, tinham relacionamento. O Dr. Lobo acabou o mandato de Presidente da Câmara, mas como tinha sido colocado pelos opositores do Eng.º Camilo de Mendonça, teve de deixar não só esta função, mas também a de Director da Estação de Fomento Pecuário, na onda Caetanista, onde foi substituído por um seu afecto, o Dr. Luís Ferreira (marido da minha professora de francês no Colégio de Macedo), fiel à cousa até ao momento em que deixou o próprio tabuleiro de xadrez e passou a fazer um jogo à parte. O Dr. Botelho também sairia de Macedo, mas por questões de carreira e de idade e o seu lugar viria a ser ocupado pelo nosso excelente amigo Dr. João Pessoa Trigo, aliado sem condições do Eng.º Camilo de Mendonça e apoiante do regime, Presidente da Câmara de Alfândega da Fé, a quem já certa vez nos referimos aqui.
O meu imaginário sobre médicos veterinários à época, tinha sido construído por todos eles e por coisas que eu lia. Mais cultos, mais viajados, mais próximos do que a bitola média, detentores duma aura social relevante pela identificação com as nobres missões da pecuária, da alimentação, da saúde pública e do socorro aos agricultores nos problemas relacionados com animais. Os médicos veterinários eram um dos pilares da sociedade, sobretudo da sociedade de província, e fonte de inspiração de carreira e de decisões de vida. De tal modo que nos Verões de 75 e 76, quando conversei com o Álvaro Mendonça sobre, precisamente, essas decisões de vida, as minhas hesitações entre história e medicina ficaram desfeitas indo para veterinária. Decidi-me, então, a que um dia voltaria a esta minha terra imitando os passos de James Herriot, o autor de If Only They Could Talk e de All Creatures Great and Small (outros títulos surgiriam mais tarde). O nosso Trás-os-Montes natal seria o Yorkshire de James Alfred Wight. Consegui, felizmente, até certo ponto, cumprir esse desígnio pessoal e um dia publiquei o meu Quartzo, Feldspato e Mica, Vidas de um Veterinário, republicado aqui.
Para ser médico-veterinário foi preciso ir para Lisboa. Apesar da turbulência que ainda se sentia, anos setenta em brasa e em crise, nas aulas era perceptível o justo orgulho com que os mestres nos apontavam os enormes progressos e contributos para o país que os veterinários tinham dado e continuavam a dar: na investigação científica e na investigação científica aplicada, no ensino superior, no melhoramento e produção pecuária nacionais, no abastecimento de leite, nas indústrias agroalimentares, na captura e preparação de peixe, na caça, nos desportos hípicos e tauromáquicos, na saúde e higiene públicas. Também apareciam as práticas relacionadas com animais de companhia. As vindas e idas de férias foram aumentando o sortido de emoções e a visão de futuro na linha do idealizado. E o início da vida profissional, coincidindo com um período especial de progresso que o país teve, no final dos anos oitenta e noventa, seguiu o seu curso em ascenção. Veterinário de campo plurifacetado, atendendo as pessoas e fazendo parte das suas vidas.
Só que esse mundo foi acabando e hoje, trinta anos passados, os médicos-veterinários enfrentam grandes angústias e incógnitas. Uma boa parte da população de onde saem os estudantes diplomados é desligada de qualquer contacto com o campo ou a vida rural. A sociedade mudou o paradigma com que encara os animais. E, na mesma sociedade, o Médico-Veterinário não é o pilar de outrora, mas um mero prestador de serviços e cumpridor de regulamentos, especializado, em que a vocação foi substituída por uma visão mercantilista e de concorrência entre os pares. Concorrência violenta, tantas vezes com a aflição da sobrevivência, que fez e faz com que se estilhacem os níveis mínimos que haveriam de estar presentes no bom relacionamento deontológico e na boa ética do exercício da profissão. O desencanto, quando não o desespero, são frequentes em muitos dos que se licenciaram em medicina veterinária e lamentam o erro de cálculo na tomada de decisão do seu curso superior.
Não será possível, porque isso nunca acontece na História, um regresso atrás – nem seria desejável – mas já será possível dar uns passos à frente para se ultrapassar o actual estado de coisas. Ainda há pouco tempo ouvi o meu filho Manuel – médico-veterinário já da nova vaga da Ajuda, mas oriundo dum íntimo contacto com o campo e sem a visão mítica que deste tem a população urbana ou de subúrbios – queixar-se dum aspecto ou outro da sua prática médica e valorizar outros. Sorri para mim. Fiquei contente. Porque o estava a fazer na justa medida em que se deve equacionar o exercício da nossa profissão se se quiser andar para a frente e ultrapassar a nossa realidade sombria. Tal passa, na base, por um posicionamento filosófico do nosso exercício profissional.
Tenho aqui de interromper o fio e de fazer um parágrafo de homenagem aos nossos mestres que nos instilaram esta visão filosófica nos antigos bancos dos anfiteatros da Gomes Freire, implicitamente. Teria de citar muitos nomes. Vou-me reduzir a um. Porque o basta em nome de todos. O do Professor Doutor Abreu Lopes. Juntava em sua casa grupos de alunos por várias razões: ou porque os notava com capacidade para ter camaradagem com os demais ao longo da vida, ou porque os sentia algo desencantados e a precisar dum empurrão, ou porque os queria distinguir com um gesto de amizade e significado para além dos laboratórios e aulas na Escola Superior. Nesses encontros, normalmente ao jantar, era distribuída uma pagela de Santo Elói, supostamente o protector dos Médicos-Veterinários. Supostamente, porque a razão pela qual o foco era posto neste santo, medieval e de charneira entre dois mundos, era outra: estudara graças aos pais, humildes lavradores e que mais nada tinham podido deixar ao filho que não fossem os seus estudos e, muito importante, era e é ainda hoje o exemplo da integridade e da honestidade, qualidades essenciais para o exercício pleno duma profissão e relacionamento com os demais. Ora acontece que, quer a dádiva dum bem intangível como o duma licenciatura, quer o ser-se honesto e íntegro, são tudo características que só fazem sentido num ser humano. E aqui reside o essencial do que o Professor Abreu Lopes e os demais nossos mestres (na generalidade) nos transmitiram: o foco da vida dum médico-veterinário não é “os animais” mas, sim, as pessoas, o Homem.
No centro da nossa actividade e atitude social tem de estar a pessoa, homem ou mulher, que temos diante de nós. Quer por ser o nosso colega, quer por ser o dono do nosso doente, quer por ser o produtor de leite, de carne, de ovos, seja o que e no que for, quer seja, ainda, o utente ou consumidor de qualquer produto de que temos a obrigação de assegurar a qualidade e segurança. O nosso interlocutor não é a vaca, ou o cão, ou seja que animal for. O nosso interlocutor é sempre alguém que tenha poder de decisão e/ou direito de propriedade sobre os animais. Será sempre na salvaguarda dos interesses e dos direitos e deveres dos donos dos animais que se deverá exercer a nossa profissão. É o Homem quem tem deveres para com os animais e exerce alguns direitos sobre eles. Pensar e querer o contrário, o da sobreposição dos animais em relação ao Homem, é um retrocesso à idade das cavernas em que o medo dominava nas interdependências entre seres. O futuro irá achar tremendo o momento que vivem os Vets. Mas este momento passará porque o futuro foi sempre feito de progresso, com alguns lapsos de tempo em que ocorreram fugazes (mas terríveis!) retrocessos. Oxalá passe depressa.
Na nossa aldeia ainda pastam, felizes, dois rebanhos, e os cães circulam livremente. Podemos falar por telemóvel com cada um dos pastores (seria impossível com as ovelhas 😊). Quando os vejo ao fim de tarde a passar numa restolha ou num terreno ondulado em que fica o seu recorte contra a Serra de Bornes, sinto-me muitas vezes remetido para os tempos, que agora já posso dizer antigos, em que conviviam os Amadeu Rodrigues, Lobo, Ferreira, Lisboa Botelho, Pessoa Trigo, outros… e em que corríamos à voz do lanche, que trincávamos a ouvir chocalhos.
Manuel Cardoso