Uma crónica de Manuel Cardoso
Uma amiga minha que tem justo orgulho nos seus vinhos manda-me, de vez em quando, as notas publicadas que sobre eles aparecem neste jornal ou naquela revista. Normalmente por whatsapp. A minha sensação é a de que quem escreve é extremamente injusto para com esses vinhos – como o é para os demais. Porque se usam as mesmíssimas palavras, os mesmíssimos adjectivos, os mesmíssimos substantivos e advérbios, que se repetem até à náusea, sobre cada um e todos eles. De modo que muitas notas de prova, para mim, vulgar leitor, acabam por nada dizer de distintivo, por nada caracterizar de objectivo sobre tais vinhos. Poderíamos fazer um exercício de trocar nomes, rótulos e castas de muitos deles que o resultado prático de informar, de opinar, de fazer marketing multiplicativo é pouco ou nenhum, numa boa parte dos casos. É quase sempre a mesma coisa. Há muita monotonia na informação e publicidade dos vinhos portugueses. Há demasiado falar para dentro, para os que fazem parte do negócio ou fazemos parte da sua informação, esquecendo-se o público de fora. Há muito investimento em vocabulário especializado e acções dedicadas para dentro do sector, muito pouco para fora do sector, para os leitores ou potenciais novos consumidores. A responsabilidade não é de quem escreve ou de quem faz as campanhas de marketing: é de quem encomenda o que se escreve e de quem paga as campanhas de marketing. Umas voltinhas na net e umas vistas de olhos no que se passa noutros países (chamem-me provinciano, mas não me importo: imitar o que os outros façam de bom e corrigir o que façamos de menos bem, sem excluir a nossa criatividade, não é provincianismo, é outra coisa) pode dar uma ideia das diferenças de sucesso na captação de público e de consumidores jovens.
Quando desliguei o telemóvel da chamada com o Jorge Marques, em que me convidou a escrever artigos para a New Men, o sol a entrar pelas janelas da sala e a lareira acesa faziam morno o ar em contraste com o de lá de fora, Outono instalado. Cliquei no botão da Netflix e fui apanhado de imediato pelo primeiro som: Erbarme Dich, Matthäus Passion Stories, filme/documentário holandês que me pregou ao écran e me fez viajar no tempo, solista da primeira voz do coro do colégio, cantando na Sé Nova de Coimbra o Ertzlibster Iesu, há cinquenta e dois anos. Para trás e para a frente com o comando, repassando momentos e testemunhos, ampliando sons, cada vez mais sem posição no sofá, emoções e saudades. Fui buscar um bolo de noz já encetado (que na véspera a Mariana e o Miguel tinham feito) e cortei uma fatia para um prato (não é dumas nozes quaisquer mas das duma nogueira do Lameirão de Macedo, com pedigree do Morgado de Oliveira, que a nossa querida amiga Marília esmera – e tudo isso se lhe nota na consistência do miolo, na essência a noz que se conserva no bolo e cujo travo se liberta ao trincar). Pus um tawny 10 anos num copo largo de pé (não me venham com a ideia sonsa de que o porto só se deve beber nos cálices estreitos de entalhe…), de que só o aflorar já inebria. Bach, repetir, garfada, porto nos lábios. O som da televisão e o sol a inundar tanto a sala como o aroma do porto, que acrescentei, encharcando as fatias do bolo de noz. Fui escrevendo no bloco de apontamentos, palavras soltas, frases, até uns parágrafos, traços jesuítas com as marginalidades da vida, os farrapos feitos esquecer, mas que estão sempre na arca à espera duma costura, a intrínseca utilidade do que é desprezado. Talvez do porto, talvez do morno do ar, da luz, talvez de qualquer coisa, mas, de certeza, de certeza, de Bach, daquele Bach a mim trazido inesperadamente, fazendo cintilar as lágrimas do Erbarme Dich na televisão, na sala, nas árvores de lá de fora, perladas de amarelos e duns verdes a esbater-se noutros tons.
Como são bons nesta altura do ano os frutos secos, em que as nozes já tiveram tempo de maturar e ainda não começaram a degradar-se, em que os dias são mais pequenos, antecipando passas! E o acompanhar o bolo de noz com porto, literalmente ensopando-o com porto, mais uma extravagância: pequenas fatias de queijo velho, também dum amigo meu.
Pus-me a folhear revistas e a procurar notas de prova antigas sobre os vinhos da minha amiga, depois disso. Um rebusco no passado. Aqui no meu estúdio do sótão os rebuscos no passado vêm sempre misturados e são um bom exercício de desempoeirar verdades e revisitar momentos. Trouxera para cima o tawny, que não é dela. Fui pensando em como poderia corresponder ao convite do Jorge Marques, em como poderia começar. Da torrente caótica de revirar páginas, de querer achar a justa medida para as palavras sobre os vinhos, dos sons de Bach, do bolo de noz e do queijo velho, do querer escrever algo que convide alguém a beber um tawny ou a abrir uma garrafa de reserva tinto numa tarde de Outono, de tudo isso chegámos aqui, ao momento da realização de teclar um texto. Com a dificuldade de ser justo, de conseguir dar a beber em gramática a vontade de trincar uma fatia de bolo de noz embebido em porto.