
O vendedor silencioso duma garrafa é o rótulo. Também é o informador, a primeira mensagem do produtor ao consumidor. Numa relação biunívoca, se for despertada uma paixão por aquele rótulo em particular e se surgir o arrebatamento para adquirir determinada garrafa, para a abrir, provar o vinho do seu interior, deixar que esse vinho satisfaça o seu desejo. Beber vinho é um acto alimentar e de prazer sensual. Por si só, ou a acompanhar uma sinfonia de outros prazeres sensuais.
Um rótulo é uma mensagem visual explícita e, também, codificada. Pode ser táctil e, com intervenção dum smartphone, auditiva e ampliada quase sem limite em complementos vídeo, informativos, etc. Não vamos para estes campos, já que o nosso foco é o da imagem, o do primeiro impacto, o dos elementos gráficos e coloridos que estão num bag-in-box, nos rótulo e contra-rótulo duma garrafa, na gravação duma caixa de madeira ou nas latas dos vinhos novos. Estou a ver à minha frente o pequeno grupo de raparigas e rapazes que há uns dias encontrei no corredor dos vinhos e bebidas do supermercado, phones, gargalhadas e andar descontraído de quem estava às compras para uma festa acima de teenager, pastilha elástica e make-ups apelativos, anéis e unhas à Salvador Dali (saberiam quem foi o Salvador Dali?) a retirar garrafas das prateleiras e a ler os rótulos… de gin, de vodka, de rum, de groselha, vá lá, dum determinado Porto, a irem fazer companhia, no carrinho, aos pacotes de frutos secos, azeitonas, batatas fritas e caixas de minis, latas de tónica e sumos de laranja. Eu estava na busca duma garrafa de branco para os nossos almoços de sábado. Porque não levam vinhos, destes? Perguntei, indicando as prateleiras arrumadíssimas das garrafas por regiões, tintos dum lado, brancos doutro, preços mais baratos em baixo, médios acima e caros entremeados… Olharam-me, passaram a vista num relance pelas prateleiras, entreolharam-se e responderam-me, num tom despreocupado: Hm, não são giros!
Três palavras resumiram o assunto: não são giros. Se há algo que eu preze é a opinião dos mais novos para testar as minhas convicções. Observando nessa perspectiva os escaparates dos vinhos, sob o ponto de vista estético, do sex-appeal, do despertar da emoção que provoca a vontade de comprar, aquele pequeno grupo juvenil valeu um estudo de mercado encomendado a uma empresa, e com uma clareza meridiana: a secção dos vinhos daquele supermercado não é gira. Quem compra ali fá-lo-á porque sabe do que vai à procura, ou gosta de vinho à partida, ou está familiarizado com o que foi uma imagem de toda a vida. Não vai atraído por uma questão de estética, não pega numa garrafa com a curiosidade da capa com que poderá comprar uma revista num quiosque ou tabacaria, não sente a atracção duma imagem numa montra de perfumaria e, se tiver ido ao supermercado para arroz ou o que seja, ao passar pela secção dos vinhos, fá-lo-á despercebidamente porque não há uma imagem, um jogo de cores, um motivo escancarado que o faça parar, olhar, perguntar-se o que será aquilo, querer experimentar aquele líquido secreto e hermeticamente fechado.
Felizmente que tem havido excepções cintilantes, algumas de grande beleza e erotismo, mas a visão geral do panorama da rotulagem dos vinhos portugueses é o de um cinzentismo e monotonia triste e apagada. Há rótulos com arte, com design, com criatividade, mas a regra geral, apesar da arte, do design, da criatividade, é a da falta de fulgor, ser mais um no meio da sucessão reticulada das prateleiras. Rótulos que cumprem bem as normas obrigatórias da burocracia, mas deixam quase tudo a desejar em matéria de arte, estética ou sex-appeal!
No arquivo do IVV, Instituto da Vinha e do Vinho, existe uma colecção notável de rótulos antigos iniciada no tempo da Junta Nacional do Vinho, e com alguns anteriores, em que uma boa parte mete num chinelo a esmagadora maioria dos que hoje em dia revestem de forma pobre as nossas garrafas. Seria um serviço à cultura e à causa se fosse feito um ficheiro online com tal acervo, disponível ao público. Há uns anos, n’ Observador foi publicado um artigo muito interessante , sinal duma evolução artística dos rótulos em Portugal. Basta ir dar uma volta pelo OLX para se perceber a imensa variedade e incrível riqueza artística dos rótulos antigos. Vale a pena gastar tempo a surfar as ofertas e ver a diversidade, a criatividade, o empenho com que, num tempo não tão fácil nem ao alcance dum clic, os artistas gráficos e as tipografias de Portugal executavam de forma exímia e brilhante os trabalhos encomendados.
Cada marca tem as suas especificidades e os seus objectivos. Nem tudo passa pelo rótulo. Mas num tempo em que o consumo per capita do vinho está a aumentar, em parte porque haverá menos consumidores a beber, deveria merecer atenção a captação de público e seria, até, vantajoso, o seu desvio das bebidas brancas e shots em cocktail para a experiência estética, cultural e artística que pode e deve ser a do vinho.
As revistas de vinhos e os suplementos de jornais trazem boa publicidade com anúncios bonitos. Mas a malta nova, a não ser a do sector, não lê essas revistas nem frequenta essas páginas dos jornais. Passa nos corredores dos supermercados, vai aos restaurantes e bares onde há vinhos nas prateleiras, mas que não lhes emocionam a vista. A malta nova, que tudo gosta de experimentar se sentir uma solicitação para o fazer, só reparará no leitmotiv vinho se lhe for dada uma emoção para isso. O rótulo pode ser essa primeira emoção. Se for giro.
Texto de Manuel Cardoso