Rachmaninov, Concerto para piano n.º 2. David Lean e Brief Encounter. A Mariana e eu fomos até à Guarda assistir à apresentação duma publicação excepcional sobre a Beira Interior, “Os Vinhos Que Vêm do Frio”, um evento/cocktail da CVRBI (Comissão Vitivinícola Regional da Beira Interior). Ainda regressam hoje a casa? Perguntava-nos o Bernardo Gouvêa, surpreendido por nos ver naquele auditório fora da nossa rota habitual sem saber que o que nos levara ali era a pura fidelidade à amizade e a nós mesmos: o livro de Virgílio Loureiro será mais um dos muitos e bons livros sobre vinhos que estão na nossa estante mas, desta vez, com o carácter e a perspectiva feminina que lhe foram dados pela Constança Vieira de Andrade, a óptica especialíssima de ler as pessoas, sensível aos seus silêncios no meio duma conversa, perscrutadora de materiais para além do óbvio e intenções, transparente nas entrevistas, conduzidas e relatadas como documentos humanos essenciais. Temos a certeza de que um segundo livro lhe vai na mente, tecido no cenário atrás do cenário e da realidade que encontrou por toda a Beira nesta investigação de campo. Saudades, dos tempos da Casa da Bouça e da nossa casa de Macedo em que tivemos a pura felicidade, a sorte, a honra de conviver com o génio que era o seu Pai: inesquecível.
Também tinha um dever para comigo nesta ida à CVRBI: uma das minhas teimosias conseguidas na vida foi a de que a callum se pudesse voltar a chamar legalmente callum e assim ser usada nos rótulos, um pouco contra tudo e contra quase todos. A posteriori, mas sempre a tempo, Virgílio Loureiro deu-me razão: “Também eu sou um purista [na ciência] mas omitir nomes é uma falta para com a língua e a história portuguesa!” – fiquei contente. No regresso pelo IP2 furou-se-nos um pneu, seria uma chamada à razão pelo destino? A assistência da Douro Interior foi eficiente a despejar WD40 no parafuso que não se soltava para podermos usar o sobresselente e mudou-no-lo enquanto decorria a goleada que demos à Suíça! Voltávamos a casa, já passáramos a Beira Trasmontana, estávamos no Alto Douro, parados na berma com o colete posto, mesmo em frente à Quinta do Chão d’Ordem. Cena que uma noite teremos de desmontar no tempo. Noël Coward, na Still Life, a peça de que brota o Brief Encounter de David Lean, faz tudo (e o tudo é imenso!) passar-se num só acto e num mesmo local.
Dias de chuvadas, brumas e ventanias, sopraram-nos a caminho do Porto e entrámos, atravessando o chic do lobby do Crowne Plaza decorado com renas de Natal, subimos as escadas, check-in simpático e atencioso, sala repleta e quente de amigos, vinhos e innuendos – de onde captara os Queen? Provámos de todos ou quase de metade: a novidade da flor de castanheiro em vez de sulfitos, o saído da wiseshape para as primeiras garrafas, o orgulho de ouvir dizer que valeu a pena incluir o godelho na portaria, a surpresa dos novos a apostar no interior e a captar de nós os segredos (nem todos sabem o que é atravessar de pedra em pedra e o nome destas que D.Dinis mandou multiplicar pelos rios e ribeiros de Portugal, as alpondras, poldras ou pondras, segundo o Dicionário da Academia), os de medalha de ouro e os de menção, aqueles que passavam pelos copos partilhados pela Mariana e por mim, todos da CVR de Trás-os-Montes! O Francisco Pavão, a Ana Alves e o Aristides conseguiram fazer do Trás-os-Montes Em Prova a prova de que Trás-os-Montes não é só potencial, mas um jorrar de vinhos real. Sempre houve videiras, uvas e alguns vinhos. Mas hoje podemos dizer: Que vinhos – e quantos! Argumentos e atenção a cada um deles, o bruhaha no salão do Crowne Plaza Porto deixou-nos conversar com o Mário Araújo e Silva (atentíssimo), a Maria e o Paulo Martins, a Virginie e o Nuno Costa, o José Preto, o Fernando Nicolau de Almeida, a Teresa Vaz e o Jorge Afonso, a Prof.ª Ana Oliveira e a Adriana Vicente, a Rute Gonçalves, o Prof. Manuel Cordeiro, o Dr. Amílcar Salgado, o Beraldino Pinto, o Francisco Gonçalves, o Leandro Garcia, a Cátia Barreira, o Luís Gradíssimo, produtores, enólogos, intelectuais, amigos! Com que amabilidade atendiam o mais de meio milhar de pessoas dos dois dias, e nós entráramos já no final! Tive pena das ausências: o Casal de Valle Pradinhos, o Costa Boal, a Adega de Valpaços, a Quinta do Lombo, a Menina d’Uva, as Arribas e o Picotês, outros mais… e, ao dizer que tive e tenho pena, faço-o pelo motivo de que sendo nós tão poucos no interior de Portugal, mesmo quando estamos todos nunca estamos demais! Mas estas ausências têm um significado bom, por outro lado: é o de que há por onde e para onde crescer! Experimentámos aromas e sabores como compete numa prova de vinhos qualquer. Só que aqui não estávamos numa qualquer e, por isso, soube-nos a uma outra coisa que só os iniciados pressentem: uma familiaridade quente, a dos vinhos com lascas de bacalhau seco ou de presunto numa adega térrea em que a primeira saúde é feita com gotas para a chão em homenagem aos ancestrais lares. Estes vinhos, ali no salão, respiravam desse sopro antigo que também perpassa entre as folhas e bagos das videiras de Trás-os-Montes. Será por isso que muitos sobreviveram à filoxera; muitos não precisam de tratamentos químicos; tantos desfrutam do aroma sobrenatural e inexprimível duma alma singular. E esta alma, este íntimo factor, é o grande segredo que os fez chegar até hoje e serem um sucesso! Não é só questão de terroir, climat et culture, como dizem os franceses e que se aplica a todos: há mais este je ne sais quoi, como também dizem os franceses, que está presente carinhosamente quando fazemos os nossos mostos. Junos e génios zelando.
O próximo ano, 2023, vai ser muito difícil. Trás-os-Montes vai ultrapassá-lo com denodo e garbo. Para o conseguir já tem o bom, o óptimo e o superlativo. Não sei como a escreveria, mas se tivesse à mão um vinho como uns que provámos, Noël Coward teria dado à Still Life um happy ending. E nós poderíamos acabar de assistir ao Brief Encounter sem lágrimas nos olhos no fim. Em todo o caso, com um valente copo para aplacar tristezas! E agora vou ler a Villas & Golf, que fez 21 anos, que o Paulo Martins teve a gentileza de me enviar! Uma nesga de Sol, lá fora!
Manuel Cardoso