Manuel Cardoso
[Notas importantes sobre o making of: este artigo foi escrito ouvindo o Libertango e o Oblivion, de Piazzolla, e a Second Waltz, de Shostakovich. Serão de entremear com o Verão e o Inverno, de Vivaldi, e com Carlos Seixas, qualquer uma. A olhar para tela. Ou a foto aqui publicada. Para conseguir ir além. Quem não conseguir, é fundamental folhear Borges. Obrigatório. Ou São Lucas.].
Numa crónica anterior, referimo-nos a haver um objecto subtraído ao rol nas nossas partilhas, para venda à parte. Trata-se dum quadro a óleo, com uma grande moldura de madeira esculpida, com dourado antigo, de dimensões razoáveis, 131×142 cm. É uma peça com uma grande carga emocional na nossa família: a ele rezaram antepassados, entre eles, as nossas tias-avós e, na presença da Senhora contemplando o Menino dormindo, numa cama de dossel, no quarto principal de casa das Sousas, morreu a nossa Avó Micas, a mais velha das netas dos últimos morgados. O quadro passou a viver, atravessando a rua numa tarde pelas mãos da nossa Adelina, de Casa das Sousas para a dos nossos Pais, na parede da sala de visitas, como uma afirmação de carácter próprio, a de que, se um dia fosse preciso a família desfazer-se de qualquer coisa por algum motivo, seria melhor desfazer-se de tudo mais, do que desta Senhora contemplando o Menino dormindo. Ficar na posse do quadro foi como uma transfusão de sangue! O Miguel, o neto primogénito dos nossos pais, tem uma fotografia em que posa sob a tela já na nossa sala, do tempo que viveu com os avós, tal como há várias da Lígia, vestida de noiva, no dia do seu casamento, quase a fechar os swinging sixties, em contraponto.
Há muitas gerações que o quadro está connosco, por isso, e em muitos momentos de família nos tem acompanhado. Grandes Natais aqueles, presentes desembrulhados sob o instante barroco duma cena que, de certeza, não aconteceu em Belém!, mas que tem uma grande beleza e poder de extasiar. Ao fim de alguns momentos a contemplá-lo, fala-se involuntariamente baixinho, não vá o menino acordar! A nossa ignorância, mas intuitiva sensação sobre este magnífico quadro, a de que estávamos perante uma obra de arte significativa, desenvolveu ao longo dos anos e das gerações uma mitologia própria que o fez ganhar contornos sensacionais. Tal como uma vez, faltando há décadas imemorias um dos florões dos vértices da moldura, sendo copiado por modelo dum dos originais pelo Zézé Carpinteiro (um verdadeiro mestre que conheci bem, com oficina minúscula no Prado de Cavaleiros e um génio maiúsculo em capacidade de execução de trabalhos e maestria de mãos, com o formão e os demais utensílios que manobrava, certeiro e a parecer fácil, diante dos meus olhos extasiados), enviado a um dourador de Lisboa no Bairro Alto, veio com o trabalho feito e um comentário eloquente: vai dourado de maneira diferente, porque nos seria impossível e não nos atrevemos, a ser dourado de maneira a imitar a igual e tão rica.
As coisas certas que se sabem, sobre a origem da nossa Madonna con Bambino, óleo sobre tela, 122×111 cm, são as de que esteve, até 1904, no quarto de dormir do senhor morgado, no solar de Macedo, em conjunto com outros dois óleos de dimensões semelhantes; que transitou para a casa das Sousas onde se manteve até 1967 ou 69; que veio para nossa casa, ocupando uma das paredes originais do quarto do senhor morgado, senão mesmo a mesmíssima parede em que esteve exposto tantos anos, quarto entretanto transformado, em duas salas de visitas, pelo Avô Amadeu.
Sobre as origens, há várias conjecturas. Uma, a de poder ter sido adquirido e colocado na casa pelo co-fundador do morgadio, o Padre José de Oliveira da Costa, no século XVII. Outra, a de ter sido o Padre Manuel Caetano de Morais Pinto, da Amendoeira, que cursou cânones em Salamanca no século XVIII, e várias vezes terá comemorado o lunes de aguas, a trazê-lo para o nosso país, e a vir para Macedo por herança da trisavó do último morgado, Ana Maria de Morais, sua filha. Outra, ainda, bastante plausível, de ter sido adquirido, pelo morgado Bernardino José, no espólio arrematado em praça do antigo e extinto convento de Nossa Senhora das Flores, de Sezulfe. Esta hipótese explicaria a existência dos outros dois quadros no conjunto do aposento de dormir mais nobre da casa, já que um deles é um São Francisco, que desde há anos está com os primos no Porto (e o Convento das Flores era franciscano), e outro se terá literalmente desfeito, por incúria e desavença de partilhas, no sótão da casa de Vale Benfeito. O tema da origem do quadro foi sempre, e mantém-se, em aberto, podendo nenhuma das hipóteses acima referidas ser, afinal, a verdadeira. O que é certo é que ele existe e é o da foto que acompanha este artigo.
No início deste século, um grupo académico da Associação Terras Quentes, que fazia um trabalho de inventário de arte na região, pôde observar a tela, in loco, e levantou-se a hipótese, escrita em artigo assinado por Vítor Serrão, que liderava a equipa científica, de poder ser um trabalho inspirado num modelo clássico do pintor bolonhês Guido Reni (1575-1642), Madonna in adorazione del Bambino dormiente, óleo sobre tela, 93×120 cm, original hoje na Galeria Doria Pamphilj, em Roma, muito em voga e difundido na época pelo desenho de Lubin Baugin (um dos seus discípulos poderia ser o autor) e gravura de Claude Charpignon. Há várias versões do mesmo tema quer em Portugal quer no estrangeiro e em diversos suportes e dimensões, por exemplo no palácio dos Condes de Basto em Évora, na Catedral de Salamanca (na Capilla de San Nicolás de Bari), e outros, alguns dos quais pudemos observar em lojas de antiguidades de Lisboa e um deles aparecendo na revista Casa e Jardim de Novembro de 1987 (que saudades e que falta faz essa revista!) na página 37. Nenhuma dessas versões, contudo, tem a beleza do traço e equilíbrio de composição da de nossa casa. Uma amiga nossa, perita em arte, de olho fulminante e criterioso discernimento nas opiniões, entendeu posteriormente que o modelo da nossa tela poderia ter sido um original de Giovan Battista Salvi detto Sassoferrato (1609-1685), Madonna con Bambino, óleo sobre tela, 95×113 cm, que hoje se encontra no Palácio Barberini, em Roma, mais do que o original de Reni. Provavelmente, a nossa tratar-se-ia duma cópia por mão espanhola, eventualmente feita em Roma. Inclino-me a poder concordar com ela se uma determinada análise (que não quero revelar) fosse feita ao quadro.
Seja como for, há numerosas versões e a net apresenta bastantes (basta introduzir as designações no motor de busca), pintadas em diversas épocas e com os valores de mercado mais díspares.
Com quase todas as paredes vazias, o processo das partilhas vai a mais de meio, andar nas salas e aposentos da nossa casa é o mesmo que estar a viver algumas passagens de Agustina ou de Camilo: fotografias, litografias, gravuras, outros quadros a óleo, espelhos, tudo e todos se têm retirado para outras partes. Cada vez mais, o espaço deixado vazio pelos móveis dá lugar ao seu preenchimento por estórias, saudades e recordações. Permanece ainda a nossa Madonna con Bambino.
Consultámos, formal e informalmente, várias empresas nacionais de antiguidades e leilões. Todas desvalorizaram a tela e continuam a não demonstrar qualquer interesse. Umas, atribuindo números de transacção que ficam aquém do da moldura por si só!, outra, informando-nos doutamente que as cópias de velhos mestres não têm cotação no mercado e, ainda, outras apontando os defeitos da tela mas sem a terem visto! Costuma-se dizer que quem desdenha quer comprar. Neste caso não daremos crédito a provérbios. Porque há um que diz que de Espanha nem bom vento nem bom casamento e, provavelmente, o que acontecerá irá ser um retorno da tela por um dos caminhos por onde poderá ter vindo…