Falar mal é fácil e é quase uma religião em Portugal. Não há opinador, intelectual, artista ou especialista de café que passe incólume nessa maré da maledicência. Nem eu. Falar mal dos políticos, da situação, do clube do lado, dos árbitros ou da vizinha de cima é como um escape nacional para o nosso mal estar crónico. É como uma libertação frequentemente excretada em tons humorísticos, quiçá para assim aliviarmos a frustração, aligeirando o fado do nosso fatalismo e assim ‘irmos andando’ como reza o dito incessantemente repetido.
O preocupante não é apenas esta mania de dizer mal. O que inquieta é não ser uma moda contemporânea pois, como dizia o velho slogan publicitário, é “uma tradição que vem de longe“. Todos os nossos maiores como Camões, Eça, Pessoa, Almada, Pessanha, Wenceslau e tantos outros não fugiram à regra. Todos alertaram para um país em declínio, decadente e sem visão. Todos se opuseram à mentalidade retrógrada e corrupta dominante. Todos clamaram por inovação, progresso e liberdade. Mas nada mudou nos quase 500 anos que os separam. São séculos agarrados à cepa torta na esperança de um dia a endireitarmos, esse irritante e imbecil espírito sebastianista, mantenedor da quimera do ‘talvez um dia’, que nos inibe de percebermos a urgência do hoje.
Portugal vive de ilusões e de saudosismos bacocos, não sabe quem é nem para onde pretende ir. Agarramo-nos a símbolos anacrónicos e desfasados da realidade, como se fosse a última bóia do naufrágio. Falta-nos a coragem para os discutir e mais ainda para os mudar. Será receio do que vamos encontrar, está tudo bem e nada mudou nestes últimos 113 anos, ou estamos tão anestesiados que já nada importa?
Culpo esta inoperância, esta falta de modernidade e de vontade genuína de construirmos uma sociedade sã e esclarecida à falta de estratégia crónica que tão bem nos caracteriza. Pelas mais diversas razões, em mais de oito séculos fomos incapazes de gerar uma sociedade progressiva, educada, optimista e afluente.
Ao olharmos para trás condói perceber que nestes oito séculos de portugalidade destacam-se apenas seis momentos onde conseguimos divisar estratégias transformadoras mas nenhuma suficientemente bem operada para hoje termos um país moderno e equilibrado. É essa a raiz do mal. Senão vejamos:
A formação do Reino: tareia nos mouros e conquista de meia dúzia de terras; as Descobertas, que deram novos mundo a todo o mundo menos a nós; a Restauração para resolver o disparate do beato Sebastião; a Revolução Liberal que, em boa verdade, liberou o Brasil e prometeu-nos um amanhecer mas rapidamente o sol se pôs num Estado Novo, enganador logo na designação, pois de moderno nada teve. Foi sim nacionalista, beato, isolacionista e desesperadamente focado em conservar um império em contraciclo com o resto do mundo mas deixando as tropas de Goa a pão e água e à mercê da União Indiana, que deu vinho ao povo em vez de educação e acentuou ainda mais as desigualdades e a ignorância; E assim chegamos a Abril com uma descolonização trôpega, mal feita, que não foi boa para ninguém, tendo apenas o (grande) mérito de nos livrar daquele Estado Velho. Finalmente, sai-nos esta Terceira República, ou 50 anos de uma réplica quase fidedigna da “Grande Zaragata” do Astérix, cuja estratégia assenta na venda do turismo e do país em retalhos e pouco mais. Apesar de tudo, engendrou finalmente um plano estratégico, o tal 20-30, carregado de boas intenções e chavões da moda. No entanto, se for gerido à velha maneira portuguesa vai servir apenas para encher mais o Inferno onde o povo diz acabarem as boas intenções e, claro, o bolso de meia dúzia como é da praxe.
Apesar de tudo, não deixa de ser uma oportunidade, mas só o será realmente se mudarmos profundamente a nossa forma de pensar, de agir e de nos relacionarmos.
Comecemos então pelo princípio, pelos símbolos que nos representam. As palavras são fracas e confusas mas os símbolos dão-nos identidade, valores e cor à linguagem. Sem símbolos, seríamos ainda mais brutos e sem qualquer espécie de cultura, pois obrigam-nos a sintetizar ideias, a filosofar, logo, a pensar.
Discutir os símbolos nacionais é tarefa urgente se pretendermos encarar o futuro com uma atitude renovada, percebermos quem somos, para onde vamos e, pela primeira vez, envolver toda a população na definição da nossa identidade que, naturalmente, deverá sair da amálgama do passado mas, sobretudo, como produto dos sentimentos contemporâneos.
Será importante não esquecer que atualmente orientamo-nos por uma simbologia criada num período pós revolucionário, momento pouco propícios a grandes reflexões, como todos sabemos.
Portugal assume-se constitucionalmente como um país laico, pluralista e tolerante, mas ainda ostenta as cinco chagas de Cristo, símbolo do catolicismo; Queremos um país moderno, europeísta e aberto ao mundo, mas usamos castelos, símbolos de isolamento e exclusão. Temos mais mar do que terra (o plano 20-30 elege economia do mar, da floresta e da sustentabilidade ambiental) mas ainda preferimos o vermelho para lembrar o sangue derramado e dedicamos o verde à esperança, essa cabra que morre depois de nós, em vez de o associarmos às florestas talvez por insistimos em deixá-las arder.
“A Portuguesa”. Uma canção nascida do protesto contra o ultimato inglês de 1890, que nos tirou parte do nosso império colonial e que continua a impelir-nos para a guerra, quando o mundo civilizado procura a paz, marchando interminavelmente contra canhões e de armas em punho como todos gritamos, desvanecidamente e a plenos pulmões sempre que a ocasião o propicia.
Não valerá a pena reflectir se serão estes os símbolos mais indicados para definirmos uma estratégia de futuro, alcançar a paz social e finalmente evoluirmos como sociedade? Eleições atrás de eleições, políticos das mais variadas cores apelam à mudança. Mas será que estamos mesmo dispostos a mudar?
A alternativa é continuarmos no beco da má língua e das vistas curtas a fazer jus ao que aparentemente Pessoa um dia terá escrito: “Pertenço a uma nação que descobriu todas as terras / E não deixou a sua alma em nenhuma / Pertenço a uma nação que se espalhou por todos os mares / E não deixou a sua força em nenhum / Pertenço a uma nação que conquistou metade do mundo / E não deixou a sua vontade em nenhum / Pertenço a uma nação que fez tudo errado / E não deixou a sua glória em nenhum“, ou ao que Almada Negreiros seguramente escreveu clamando que “Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mais atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia – se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado”.
Nota: o autor não segue o Novo Acordo Ortográfico.
Artigo por Fernando Eloy