
Uma crónica de Manuel Cardoso.
As portas abertas para a varanda com o mar em frente, o som das ondas da Baía de Armação de Pêra, arrepios de gaivotas, azuis e verdes neste tapete de água estendido até Marrocos. Tranquilidade cheia de azáfamas na areia, maré-baixa de passeio e despertares de férias. Nasce o sol.
Feliz, esta luz do Sul, captada pelos poetas de Silves e de Cacela, passada a escrito nas letras de Sophia, de Fernanda de Castro, do Ary, bebida pelos olhos de fazedores do dia-a-dia, gizada nos estiradores e obras dos arquitectos de paisagens. O apartamento em que estamos mantém a presença de Edgar Sampaio Fontes como se ainda hoje a sua carga científica e extensa cultura, humanista e abrangente, zelassem pela defesa da paisagem portuguesa numa felicidade que não morreu. Nos jardins do Bairro de Alvalade, nos do Palácio dos Coruchéus, nos do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian, em numerosos outros trabalhos conserva-se, viva, em plantas e canteiros e em desenhos de recantos e linhas de horizonte, a memória do sonho e da concretização do sonho. Numa conversa de ontem à noite se relembrava a capacidade notável que tinha de distinguir as variedades de rosas pelas notas de aromas, e, por isso mesmo e exímia ciência botânica, a participação como convidado para júri de muitos concursos internacionais pela Europa fora.
Tivemos e temos arquitectos paisagistas de génio: Caldeira Cabral, Ribeiro Telles, Azevedo Coutinho, Vianna Barreto, Ilídio de Araújo, Álvaro Dentinho, Vaz Pinto, António Campelo, Sousa da Câmara, Teresa Andersen, e se estes nomes estão a ocorrer como se pairassem com os voos e com a ondulação, é talvez porque o nosso beber da paisagem nos seja inerente e viciante para quem se identifica com Portugal. Como Edgar Sampaio Fontes.
Este apartamento de férias em que estamos, pela mão da Tété e do Luís, tem mais do que o mobiliário resumido dos apartamentos de férias. Um armário de autor com um recheio intelectual de livros, de modelos de barcos e de aves de madeira, de conchas apanhadas na praia e duma colecção notável de louças da SECLA, das Caldas da Rainha. Estrelas-do-mar. Nas paredes, uma destas estrelas e oito quadros com barcos, peixes, conchas, motivos oceânicos, das de lojas de decoração… mas há três deles especiais, estarem aqui deve-se a razões especiais, supomos – temos a certeza!
Um deles, “Abstracto”, uma serigrafia de Catarina Castel-Branco (n. 1956), que para a Mariana se trata dum frasco de perfume e, para mim, duma bomba, e que, certamente, será uma outra coisa, real ou onírica.
Outro, também uma serigrafia, de Cipriano Dourado (1921-1961), é uma Camponesa, de 1962, original na Gulbenkian, que a olhar-se para ela é ver uma menina plantadora de arroz ou ceifeira de trigo que, por sua vez, nos fita a nós mais fortemente ainda – gesto inteiro cumprindo-se no olhar-convite de intervalo no esforço do campo, interpelação. Se não nos travarmos na observação podemos perder-nos e achar-nos poetas. Com isso faríamos justiça à vontade do pintor neo-realista, obsessivo nos traços de a ninguém deixar indiferente e a todos querer despertar. Para a poesia e para a realidade, formas particulares dos artistas fazerem a sua descoberta das verdades.
Finalmente, de Dorita de Castel-Branco (1936-1996), um desenho a lápis de cor, dos apontamentos para a exposição-série O Jardim das Delícias, levada a efeito na Estufa Fria em Outubro de 1977. Dorita detestava o cheiro de tintas e diluentes, que lhe eram insuportáveis, e, por isso, os seus esquiços e notas são a lápis sobre cartão ou papel. Este não fugiu ao hábito e serviu de correio. A genial escultora trabalhava no atelier número 3 dos Coruchéus, a que teve acesso ainda antes da inauguração e concurso, nesse início dos anos setenta. Os seus elementos de escultura frequentavam diversos jardins e recantos de Lisboa, conhecidos ao centímetro por Edgar Fontes. Tal como conhecia todos os artistas da cidade, que com ele partilharam muitas cumplicidades e a quem valeu de incentivo em numerosas ocasiões.
O arquitecto paisagista e exemplar profissional dos serviços da autarquia de Lisboa tinha uma visão completa sobre a arte da cidade e o seu enquadramento. Foi responsável pela Estufa Fria e por outros espaços verdes que, entrados na normalidade das nossas vidas, acabamos por nem pressentir o trabalhão que têm por detrás. O génio que têm por detrás. A arte que têm por detrás e pela frente e nos imbebe de beleza e esplendor. A ponto de nos fazer participar em corpo inteiro da sua ecologia, por que de ecologia se trata, da qual somos um elemento, o elemento humano, o mais importante de todos, capaz da sua viabilidade como arte, ciência e sonho.
A profundidade deste conhecimento da relação sobre a arte e toda a vida de Lisboa palpita num pequenino cartão de visita de Dorita, encaixilhado com o esquiço a cores para uma das realizações de O Jardim das Delícias, manuscrito a acompanhar a mensagem artística que lhe enviou, desenhada: 16.11.77 Eng.º Fontes: Para que não se esqueça que foi o seu “agrément” que tornou “O Jardim das Delícias” uma realidade. Um beijinho, Dorita. Está aqui no apartamento de praia. Na mesma parede que, dum lado e doutro, tem as portas abertas para a varanda com o mar em frente, as portas abertas para o infinito e para a tranquila felicidade.