
O licor de café era feito numa terrina de faiança inglesa de Staffordshire que, nos seus tons azuis e brancos e, até, pela sua origem, dava um carácter monárquico àquela fórmula antiga, usada na casa das nossas Tias Sousas e decantada de imensos sentimentos misturados. Era uma fórmula secreta, “de família”, servida a convidados e até mesmo os mais pequenos, entre nós todos, podíamos molhar a ponta da língua naquela delícia vaporosa e doce. Grandes eras de inocência, longe das explicações de hoje, em que muitos apontam para que a coincidência de cafeína, álcool e susceptibilidade genética possa ser uma das causas de cancro gástrico. Interessante que, connosco, gerações sucessivas, nenhum tenha padecido deste mal no estômago, felizmente.
Olhando pela janela enquanto escrevo, por aqui está tudo reduzido a mínimos: o frio tem feito o que lhe compete, os ramos das árvores estariam completamente nus se não fossem os líquenes-da-islândia a forrá-los e a entreter alguns chapins esporádicos, rabirruivos e umas trepadeiras-comuns que os reviram a catar alimentos. O nabal, já muito colhido, vai espigando uns amarelos, em contraste com a cinza espalhada, ida da nossa lareira, a aguardar pingos de chuva que venham daqui a uns tempos ressuscitar fénixes.
O ambiente rural da nossa comunidade, resistente neste interior de Portugal, ficou bem patente há uns dias, no eco da assembleia ao Padre Eduardo, na missa de quarta-feira, quando este perguntou porque eram importantes as cinzas: “para os alhos”, foi a resposta profana que todos tiveram em mente e deram quase em uníssono, referindo-se aos alhos acabados de plantar nas hortas e quintais em terra aconchegada com os cinzentos encarvoados, dessintonizados do que o celebrante teria na sua cabeça, a de que aquele pó é uma expressão simbólica muito nítida da morte, o resto informe duma coisa que se destruiu, para usar as palavras do Tio António, o nosso bom Cónego Figueiredo, que nos deixou um livro precioso de vida e memórias rurais, esgotado e a pedir reedição, Ambiência do Ano. Estas cinzas não são as dos mortos, são as do simbolismo da compunção, outrora impregnadas nos cabelos de anacoretas e penitentes, estampada na pele, sinal de frugalidade extrema, película de contacto com o além e o íntimo, simultaneamente.
Produto multifunções, as feminae romanas usavam as cinzas para tingir os cabelos e fazer cosméticos, as lavadeiras no rio para as barrelas de roupa branca, as empregadas domésticas para limpar e arear metais polidos, as bruxas e mulheres de virtude para mezinhas e estratagemas de enganar crédulos e clientes. Vi homens a usá-las para lavar garrafas e chocalhar o sarro de garrafões, outros a espalhá-las para proteger plantas de insectos malfazejos, livrar as capoeiras de pulgões e piolhos. Desde sempre, um produto do fogo, olhado pela humanidade como um potencial de promessas contidas. As silvas cortadas, plantas daninhas, guiços de poda e pernadas inúteis de árvores, se reduzidas a cinzas numas labaredas que queimem o mal, ficam à mercê de usos e propriedades que a primavera se encarregará de reciclar. Aqui e além vêem-se as colunas de fumo que deixam para trás o trabalho do controlo de infestantes, de reparação de sebes e de condução de vinhas que é feito nesta época, mancha no chão da cinza prometedora de não repetir pragas, mas de fecundar raízes.
Os artistas dão especial uso às cinzas azuis e verdes, os escritores ao seu poder de remissão e recomeço como nos poemas de Borges “Las cosas son su porvenir de polvo “ e “el último jardín será el primero”. Até nas séries mais negras (zu Aschen, zu Staub decompõe-se em elementos de análises vertiginosas), as cinzas aparecem como destino e esperança, algo difícil de conceber nos momentos sombrios, mas essenciais para se perseguir desideratos construtivos e se seguir em frente na vida. O amor, tantas vezes reduzido a cinzas, consegue refazer-se das próprias cinzas como um motor de realização.
Assisti várias vezes ao meu Pai, no processo do licor de café. Começava no olival e terminava na adega, aliás, no louceiro-aparador da sala. Na tal terrina azul e branca, na mesa de madeira da adega, despejava-se um litro e meio de aguardente nova (duas garrafas) a que se acrescentava quase um quilo de açúcar escuro e um pouco menos dessa quantidade de café, do melhor, moído no Mascarenhas. Misturava-se tudo, remexendo-se com uma concha de prata que, depois de três ou quatro agitações, ficava a aguardar num prato, ao lado. A terrina era tapada. Como era extraordinário aquele perfume, aquela mistura de perfumes, o da aguardente, o do acúcar, o do café, e como todos juntos resultavam num outro, indefinível, que por dias se insinuava um pouco pelo pátio, já que o Pai, ao entrar e sair de casa para ir trabalhar na repartição, passava de cada vez pela adega e voltava a fazer os mesmos movimentos com a grande colher de prata. “Isto é uma solução saturada” – e explicava-me o que era, em ciência física-química, uma solução saturada! O açúcar, primeiro pastoso e aparente na concha, ia-se dissolvendo e sumindo. No segundo dia notava-se cada vez mais o café, fina película à superfície e grossos grânulos no fundo, tom escuro de toda a poção, cada vez menos castanha e mais a fugir para o negro. Que ficava retinto quando se misturava o “segredo de família”: tínhamo-lo feito na véspera, queimando um pequeno molho de vides da poda da nossa vinha, que tinham secado atadas e estado penduradas na varanda, com dois ou três raminhos de oliveira, e, depois, as misteriosas cinzas eram apanhadas com a pá do lume para irem arrefecer numa travessa, na despensa, peneiradas no dia seguinte numa ceitil e, finalmente, adicionadas à mistura na terrina onde maturava a magia. Mudava tudo. No dia seguinte não havia nada a flutuar no líquido preto, perfume mais discreto e polido, só remexendo-se com a colher se despertava do fundo uma mistura espessa mas fluida. Tinham passado três dias desde que toda a operação começara. Então, numa garrafa de cristal bojuda, daquelas bonitas de tampa esmerilada, colocava-se um funil de vidro com um papel de filtro frisado onde, com cuidado, se despejava o máximo de líquido sobrenadante da terrina. Gota a gota, caía para o interior o almejado licor de café.
Seguia num frasco pequeno para ser provado em casa dos primos, a garrafa grande e bojuda ficava, orgulhosa, fechada à chave no louceiro da sala, a poder vertê-lo em cálices ao serão, quando havia visitas ou vinham as manas de Lisboa. Também para dias frios. Era um licor capaz de tudo. Dos de fazer renascer. Até as memórias.