
A emoção ao sair do Tivoli era imensa e estivemos horas, dias, todo o tempo desse Verão, nos anos setenta, a discutir, elucubrar ideias e teorias, ou seja, a cumprirmos o que Arthur C. Clarke desejava que os seus leitores imaginassem e o que Stanley Kubrick, com a sua linguagem cinematográfica de ruptura e espectacularidade, propusera como experiência aos espectadores. Desde então – e sê-lo-á para o resto da minha vida – quando se ouve o Prelúdio de Also Sprach Zarathustra, de Richard Strauss, imediatamente sou remetido, à velocidade do espírito, para o primeiro instante, no Tivoli, em que se fundiram numa só realidade as imagens, os sons e o propósito do 2001 A Space Odissey.
Em Pitões das Júnias o carro pode parar-se a metros e é da praxe os visitantes irem para o degrau do marco geodésico para uma foto, mais ou menos romântica ou provocante, conforme a motivação de quem manobra os telemóveis. Mas também a metros desse vértice geodésico (do Anjo da Guarda de Pitões das Júnias, 1131 metros de altitude) há outras coisas interessantes que nos captam a atenção para dimensões diferentes. Aconteceu há dias quando, deixando-o vago para que um parzinho de espanhóis se fotografasse em poses de Corín Tellado (sabê-lo-iam?), deparei com a silhueta vertical dum monólito negro, magnético para recordações e tempos, que fui tactear com o respeito mimético dum hominídeo ancestral, parecendo-me, benfazejas, as notas do Prelúdio, inaudíveis mas fortes, entretidas no vento que se escorregava, nesse fim de tarde suave e morno, pelas urzes e pedras de land art, de que a Mariana, a Camila e a Paula ouviam o Miguel dar explicações sucintas e percorriam com sobressalto e surpresa. Um baixo-relevo dum bebé esculpido num granito polido e dividido em homotetia, faz a invocação carinhosa e espectacular para a génese, no filme de Kubrick dada com uma imagem intrauterina. Numa fraga agarrada à rocha-mãe, de mãos dadas, uma inscultura remete-nos para outros mundos com um ressuscitar de mitos fundacionais, da Idade Média, de Pedro e Inês, Heloísa e Abelardo, Filipa e João, Margarida e Miguel, presentes desde a Pré-História, desde o Egipto, desde o Paraíso. Não se imagine que esta arte, espalhada nuns milhares de metros quadrados, resulta de descuido ou de meras intuições casuais. Bem pelo contrário. Há uma intenção obstinada neste Anonyma – Anonymous Art Project. E essa intenção nasceu aqui no Gerês. É sentida, por exemplo, palpando o monólito negro, sem mais, e deixando em liberdade tudo à volta, percorrendo com o olhar, com a curiosidade e com uma crescente interrogação interior aquele rebusco de pedras ora planeada, ora casual, ora, até, aleatoriamente dispostas para atrair o nosso olhar, despertar a nossa curiosidade e fazer crescer a nossa interrogação interior. Com uma finalidade? Sim, a de nos dotar da intuição reveladora de que tudo e toda a natureza pode ser arte, tudo e toda a natureza tem um artista, tudo e toda a natureza tem um artista anónimo. Ou vários. Porque para a parede em construção e em polimento, que está orientada para o Sol no Ocaso no Solstício de Verão, contribuíram vários artistas: o da idealização, da concepção, da colocação, do afeiçoamento (com uma máquina eléctrica portátil a agir conforme o pensamento e a mão que experimenta a superfície onde deslizam o pó de pedra e os pensamentos, alguns evolando no ar soprados pela aragem que afasta a poeira que também se acumula na face, cabelo e fato de trabalho do escultor), que podem ser todos ou um, e – acima de todos mas familiar – o de quem concebeu os solstícios, o do Senhor do Tempo. Estão à procura e experimentam um diálogo com Ele, todos estes anónimos? Nas noites sem Lua no Planalto da Mourela onde brota Pitões, as estrelas parecem ao alcance da mão com o braço ao alto. Lavram-no riachos que brincam de piscina em piscina tornando musicais as tardes e manhãs em que a toda a volta nos sentimos rodeados duma coroa real de quartzos, feldspatos e micas. Escondido num vale, está o convento de Santa Maria das Júnias, em todos os roteiros e livros mencionado de fundação Beneditina e reformado de Cister – mas todos omitindo uma referência expressa, que a merecia, a três espectaculares cruzes templárias, cada uma em seu tímpano das portas de acesso à igreja, como que velando pelos segredos duma outra realidade ali conservada de forma discreta mas eficaz. Nele não nos faltou, manhã de sol entre carvalhos robles que faziam a guarda, o som duma querida Escócia emitido por um quinteto de Gaiteiros de Pitões, orquestrados em fundo pela rumorejante e cristalina água. Soberbo e raro, todo aquele momento, ouvido também por sardões e embalando um enxame de abelhas que, por uma frincha, estará preenchendo de favos de mel o interior da parede. Corre água pela ruína da cozinha cumprindo a velha vontade dos frades como se a natureza se encarregasse de conservar o mistério e transcendência do sítio, em que ainda se abrigam e nos inspiram, apesar de tudo, a arte, a ideia e o homem. E a ruína da lareira e chaminé parece aguardar, paciente, que alguém, disposto a tal, coloque uma gabela de guiços, estevas e urzes, a arder, para um agasalho que asse uns rojões e ferva um caldo num tripé de ferro. Pode parecer pretensioso todo este colar de erudição leve às horas do dia-a-dia de quem apenas passeava, a usar o tempo dum fim-de-semana comprido a visitar amigos. Mas o colar é intencional. Porque o mesmo movimento artístico cola também, literalmente falando, o caos nas revistas já publicadas, formas de dissolver autor, obra e materiais e obtendo no final apenas o resultado, sem o autor, concretização anónima da mensagem mais importante: a de que os autores, o Autor, de muitas das grandes obras e descobertas que perduram na Humanidade, são autores anónimos. Não se trata de serem desconhecidos: trata-se de serem conhecidos pelo seu anonimato. Por isso estas esculturas espalhadas têm o propósito erudito de não ser assinadas. Esculturas, re-instalações, outras obras, condensados em papel, a printed matter, metamorfoses, presentes na Gulbenkian e em Serralves, até em joalharia mostrada na PIN, Primeira Bienal de Joalharia Contemporânea de Lisboa. Já muitos artistas passaram pela varanda voltada a sudoeste e de onde se pode avistar – capacidade dada aos que ali vão por bem – a alma e a vida, ao contemplarmos os cimos, as linhas de água que descem da Fonte Fria, o Beredo dirigindo-se para o Campesinho e a albufeira de Paradela. Com a pergunta: será anónima a nossa alma na outra vida? Partiremos para a Eternidade recomeçando, afinal, dum zero redentor? Na esquina da varanda está um pedregulho magnífico de perfil, a comunicar-nos com a outra parte do mundo, muito provavelmente com a Ilha de Páscoa, com outros relais de significado e olhares, também eles infinitos e intemporais. São diferentes dos nossos, os caminhos dos artistas para chegar à Verdade, percorridos com liberdade e propósito. Também os de ascetas, os dos místicos, os de quem dá a sua vida nessa entrega a esses caminhos. Para muitos, esse percurso começará num passeio em que cheguem ao Marco Geodésico do Anjo da Guarda de Pitões das Júnias, horizonte de dia ou de noite, cujo alcance poderá ser infinito e intemporal, dependendo do observador.
A Mariana e eu saímos de Pitões depois de almoço, despedindo-nos da Margarida, da Inês, da Camila e dos Miguéis. A Paula, Artur e filhotes já tinham zarpado de manhã. Numa fonte, na estrada estreita para Tourém, tomei um comprimido de que me esquecera das horas. A água gelada e saborosa a escorrer do granito, que aparei com a mão em concha, seguia lameiro abaixo onde pastavam vacas. Parámos em Celanova, unida a Pitões por São Rosendo. Na esplanada do Café Espolón, voltada para a Igreja de S. Salvador (onde entrámos, rezámos e saímos), un té y una caña con tostadas. Em mente e nos meus ouvidos, o Preludio de Also Sprach Zarathustra. Ainda hoje. A Mariana fazia anos.
Texto de Manuel Cardoso