
A notícia desta semana é, claramente, a demissão da Google de Geoffrey Hinton, considerado por muitos como o padrinho da Inteligência Artificial (IA), da aprendizagem profunda (a.k.a. ‘Deep Learning‘), depois de nos anos 80 ter proposto com mais dois colegas uma técnica que viria a ficar conhecida por retropropagação, ou seja, o que permite às redes neurais artificiais treinarem e que sustenta quase todos os modelos actuais de aprendizagem de máquina.
Para os menos atentos é precisamente este conceito que muda tudo e, por isso, nunca devemos olhar para um sistema de inteligência artificial como um computador limitado pelo sistema operativo que corre e respectivo software. Em primeiro lugar não é um computador, pois evolui tal como nós, por tentativa e erro, por observação e aperfeiçoamento e, quando ligados à rede, as potencialidades destes sistemas escalam a uma velocidade vertiginosa. As redes neurais são construídas precisamente à imagem do cérebro humano e é isso que assusta.
Geoffrey Hinton quer liberdade para poder expressar livremente a sua preocupação, o que deve acontecer já amanhã na EmTech Digital do MIT. Um bocado como se o Dr. Frankenstein quisesse travar o monstro antes dele sair para a rua, quer dizer, controlá-lo enquanto ele é pequenino, ou como uma tentativa desesperada de evitar molhar o Mogwai ‘Gizmo’. Hinton está preocupado, muito preocupado. Como disse numa entrevista publicada ontem no New York Times, consola-se com “a desculpa do costume: se eu não tivesse feito, outra pessoa teria” e considera mesmo “extremamente difícil perceber como impedirmos maus actores de utilizarem a tecnologia para o mal” e, naturalmente, preocupa-se com a disrupção que isso trará aos mercados de trabalho – e tem razão para isso porque, pela primeira vez na história da humanidade, a tecnologia vai substituir não apenas o trabalho braçal mas também o cerebral, o trabalho criativo aquela zona que nós orgulhosos sapiens pensávamos ter o controlo exclusivo.
Esta preocupação, todavia, já há muito tem vindo a ser ventilada por pessoas como o escritor, activista e e psicólogo Scott Santens que em 2016 num artigo essencial para quem queira perceber o que é a Inteligência Artificial e a forma negligente como temos vindo a lidar com ela, num texto onde fica a perceber como tudo mudou quando o sistema de IA da Google venceu o campeão Mundial de Go (considerado o jogo mais dificil do mundo) deixando todos de boca aberta, e marcando o momento quando a velocidade do nosso desenvolvimento tecnológico passou de linear para parabólica (!), defendendo a necessidade, já então urgente, de os governos começarem a pensar em regular a IA e a considerarem a necessidade da criação de um salário garantido para a hordas de desempregados que aí vêm. Passaram-se sete anos e, entretanto, a IA já está por todo o lado, até na selecção prévia de currículos para ofertas de emprego e em tantas outras actividades que fica difícil numerar. O ChatGPT, Bard e Bing são apenas a ponta de um imenso icebergue e nós, o mundo inteiro, os passageiros deste Titanic cibernético que muitos, de novo, pensam ser inafundável. Ainda ontem Santens anunciava no Facebook o décimo aniversário da sua insistente luta pelo rendimento mínimo universal pois, argumenta, o dinheiro poupado pelas empresas com a diminuição drástica de postos de trabalho tem de ser colectado em impostos e distribuído por todos aqueles destinados ao desemprego.
Tem sido um imenso pregar no vazio.
PAUSA? PAREM TUDO!
Como parece ter caído em saco roto a preocupação de um outro pioneiro da IA, Eliezer Yudkowsky, que neste seu artigo na Time Magazine publicado no final do passado mês de Março explica as razões da sua recusa em assinar a ridícula carta a pedir uma pausa de seis meses (!) no desenvolvimento dos sistemas de IA e apoiada por cínicos como Elon Musk, que dias depois veio anunciar estar a desenvolver um projecto concorrente ao ChaGPT (deve ter assinado para ganhar tempo) e outros, como Yuval Noah Harari que eu pensava ser bem mais esclarecido. Yudkowsky é claro ao dizer que precisamos é de parar já, não de uma pausa, chegando mesmo a dizer que considera como metáforas válidas para o que estamos a viver “uma criança de 10 anos a tentar jogar xadrez contra o Stockfish 15“, “o século XI a tentar lutar contra o século XXI” ou o “Australopiteco numa luta contra o Homo Sapiens“. Yudkowsky vai mesmo mais longe ao afirmar que “se continuarmos neste caminho é a própria existência de toda a humanidade que pode estar em causa“.
Naturalmente, sabemos como todas as revoluções tecnológicas trouxeram consigo alarmistas, dizendo barbaridades como a dos carros nunca serem capazes de substituir os cavalos, as lâmpadas eléctricas serem uma moda pateta, as máquinas da revolução industrial irem substituir todo o trabalho ou até as famosas manifestações de professores nos anos 80 a quererem proibir a utilização de máquinas calcular nas escolas. A questão é que nunca ninguém viu Henry Ford arrepender-se de ter criado o automóvel ou Edison preocupado com o possível efeito devastador das lâmpadas eléctricas. Para além do impacto da IA ter um potencial disruptor milhares de vezes superior, a velocidade que lhe está associada não permite às arcaicas estruturas humanas adaptarem-se em tempo útil.
DÚVIDAS, MUITAS
Mas se durante anos foi o vazio, lembro-me bem quando pela primeira vez escrevi sobre este assunto no Hoje Macau em 2016 das piadinhas que ouvi com “Terminator” pelo meio, agora chegou o entusiasmo e não há café onde o assunto não venha à baila. Mas se as vozes dos verdadeiros especialistas vão-se erguendo avisando dos perigos de uma IA descontrolada, e até Sundar Pichai, o Director Executivo da Google numa entrevista recente ao programa “60 minutes”, ter mostrado reservas e mesmo ignorância sobre o que aí vem, apesar do optimismo corporativo com que tentou maquilhar as dúvidas, têm vindo a surgir uns arautos da treta, uns ditos evangelistas e outros mais do género guru a tentarem branquear a seriedade do que temos pela frente armados de paninhos quentes e discursos motivacionais. Cuidado!
Apesar deste alerta não pense o caro leitor que sou um desses anquilosados retintos avessos ao progresso, ou algum ludita inebriado por paraísos hamish. Antes pelo contrário, sou um grande adepto de novas tecnologias, reconheço a valia da IA como ferramenta de apoio, e utilizo-a frequentemente como assistente de trabalho. Todavia, reconheço-lhe os perigos e a necessidade de termos noção do que estamos a fazer. A IA não é uma máquina de escrever eléctrica, nem sequer um motor de explosão. Está mesmo muito para além da invenção da roda ou do controle do fogo. DESREGULAÇÃO ASSUSTADORA
Mas se a tecnologia tem um potencial assustador o que aterroriza mesmo é o seu desenvolvimento estar exclusivamente nas mãos de empresas privadas cuja única preocupação é satisfazerem os seus ávidos accionistas. Ou seja, regulação zero. Os Estados têm de entrar em cena rapidamente e em uníssono. Não podem ser actos isolados de um ou outro país porque fronteiras é coisa de gente, não é coisa de máquinas e o que afectar uns vai necessariamente afectar os outros a uma velocidade que nem um COVID em anfetaminas conseguirá alguma vez acompanhar. Os países têm de se sentar à mesa, ontem, e assumirem posições.
Não podemos esquecer que estes sistemas aprendem connosco e todos sabemos o atraso civilizacional onde nos encontramos, onde as guerras ainda fazem sentido para tantos, onde o caos continua ser a realidade subjacente, ou não bastasse um simples apagão para as hordes entrarem em estado selvagem, ou um vírus de má catadura provocar cenas de pancadaria pelo último rolo de papel higiénico mesmo sem nenhum dos beligerantes saber porquê. “Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és” diz o povo na sua razão empírica, certamente algo parecido com o que irá na cabeça dos Hinton e Yudkowsky desta vida. Senão, poderá ser um ‘ai’ que nos deu.
Nota: o autor não segue o Novo Acordo Ortográfico e inventa palavras a seu bel-prazer quando entende que o dicionário não chega.
IMAGEM: Criada pelo sistema de IA Bing via Dall-E com o prompt: “a very cybernetic image of a Robot holding Planet Earth in its hand“AI… AI…