
Os Acordos de Minsk, assinados pela Ucrânia, Rússia, França e Alemanha, foram apresentados como uma solução para evitar o conflito armado no Leste da Ucrânia, mas, na realidade, nenhuma das partes queria o seu cumprimento, pois, como se veio a constatar, era impossível levá-lo à prática.
Mas para se compreender as origens deste processo temos de recuar a 14 de Abril de 2014, quando Olexandr Turtshinov, Presidente interino da Ucrânia, assinou um decreto secreto que deu início a uma operação anti-terrorista nas regiões separatistas de Donetzk e Luhansk. Isto foi provocado pelo ataque contra militares ucranianos nos arredores de Slavyansk por membros de um movimento separatista criado pelo Kremlin.
Depois da tomada de posse de Petro Poshenko no cargo de Presidente da Ucrânia, em Junho do mesmo ano, Kyiv lançou uma forte contra-ofensiva que lhe permitiu reconquistar as cidades de Slavyansk, Kramatorsk, Severodonetzk e Lissishansk. No início de Julho, ele declarou que, brevemente, reconquistaria Donetzk e Luhansk. Porém, em Agosto, as tropas ucranianas sofreram uma pesada derrota em Ilovaysk, tendo morrido 336 combatentes e desaparecido 155. O comando do Exército de Kyiv atribuiu esse desaire ao facto de tropas regulares russas terem apoiado os separatistas.
Em Setembro, representantes da Ucrânia e da Rússia, tendo como intermediária a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa, assinaram o primeiro “Acordo de Minsk”, que previa o cessar-fogo, a amnistia dos participantes do conflito, a concessão a alguns distritos das regiões de Donetzk e Luhansk de um estatuto especial e a realização aí de eleições locais.
O silêncio das armas foi curto e os confrontos armados voltaram ao Donbass, principalmente em torno do aeroporto de Donetzk e de um importante nó de transportes Debaltzevo. Após longas conversações com a participação dos dirigentes da Ucrânia, Rússia, Alemanha e França, foram assinados os “Segundos Acordos de Minsk”, que detalhavam o documento anteriormente concluído e apresentavam um calendário para o seu cumprimento.
Porém, eles também não passaram do papel.
É de sublinhar que esses acordos foram assinados num momento em que as tropas ucranianas sofriam pesadas derrotas na luta contra os separatistas russófonos e “voluntários” russos.
Esta é uma das razões que levou os actuais dirigentes ucranianos a recusarem-se a cumprir o estipulado e a exigirem a sua revisão. Olexey Danilov, secretário do Conselho de Segurança e Defesa Nacional da Ucrânia, declarou a este propósito: “O cumprimento dos Acordos de Minsk significa a destruição do país. Quando eles foram assinados sob a mira dos canhões russos, enquanto os alemães e franceses observavam, todas as pessoas sensatas compreenderam que a realização desses documentos é impossível”.
Moscovo, pelo contrário, insistia em que o Ocidente obrigasse a Ucrânia a cumpri-lo. Quando foi analisada a situação na Ucrânia, Serguei Lavrov apelou a que, “em vez de incentivar a retórica política e equipar as forças armadas ucranianas com vários tipos de armamentos, os Estados Unidos devem utilizar a sua influência sobre as autoridades ucranianas para obrigá-las a cumprir completamente os Acordos de Minsk”, lê-se num comunicado publicado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros após a conversa telefónica entre os chefes da diplomacia norte-americana e russa: Antony Blinken e Serguei Lavrov. Isto já depois do início da invasão da Ucrânia por tropas russas, em 24 de Fevereiro de 2022.
As principais divergências diziam respeito principalmente à ordem como deviam ser cumpridos os parágrafos dos acordos. Estes previam, inicialmente, a realização de eleições nas regiões separatistas após a revisão da Constituição da Ucrânia e a aprovação de uma lei que concedia um estatuto especial a Luhansk e Donetzk. Depois, as fronteiras entre a Rússia e a Ucrânia, na região do conflito, passariam a ser controladas por tropas ucranianas.
Ora Kiev exigia, primeiramente, o controlo da fronteira e só depois a realização das restantes propostas. Isto porque as autoridades ucranianas receavam perder parte do seu território, pois centenas de milhares de habitantes das regiões separatistas já tinham recebido passaporte russo, o que permitiria eleger forças pró-russas e utilizar a autonomia a favor de Moscovo, transformando as duas regiões como trampolim para alargar a sua influência a novas regiões da Ucrânia. A federalização do país poderia levar à sua desintegração territorial.
“A escalada nas fronteiras não está ligada ao início de uma guerra de grandes dimensões contra a Ucrânia, embora esse risco existia sempre, mas para obrigar a Ucrânia a cumprir os Acordos de Minsk. Se não compreendem que os actuais acordos significam a perda da independência e da soberania da Ucrânia, leiam o documento”, declarou Iúlia Timoshenko, uma dos líderes da oposição.
O Presidente ucraniano Volodymir Zelensky nunca apoiou os documentos assinados pelo seu antecessor Petro Poroshenko, que depois se juntou aos que também protestam contra a sua implementação, pois, se o primeiro cedesse nessa matéria, arriscava-se a ser varrido do poder não só pela oposição, mas por muitos dos seus apoiantes.
“Se eles [Estados Unidos, NATO e União Europeia] insistirem no cumprimento dos actuais Acordos de Minsk, isso será muito perigoso para o nosso país. Se a sociedade não aceita esses acordos, isso pode provocar uma crise política interna, e a Rússia aposta nisso”, avisava Olexey Danilov.
Ucrânia queria ganhar tempo
Os membros do “Quarteto da Normandia”, que elaboraram o citado documento, tencionavam continuar as conversações, mas era difícil vislumbrar uma solução para este problema. Aqui é preciso frisar, como reconheceu Petro Poroshenko, Angela Merkel, ex-chanceler da Alemanha, e François Hollande, antigo Presidente de França, que os acordos também foram assinados para que a Ucrânia ganhasse tempo para se preparar militarmente.
Em Dezembro de 2022, Angela Merkel reconheceu: “O Acordo de Minsk de 2014 foi uma tentativa de dar à Ucrânia tempo. Ela também utilizou esse tempo para se tornar mais forte, como se pode ver hoje. A Ucrânia de 2014-2015 não é a Ucrânia actual. Como puderam ver durante os combates na região de Debaltzevo em 2015, Putin poderia ter ganho facilmente. E duvido muito que, nessa altura, os países da NATO pudessem fazer aquilo que hoje fazem para ajudar a Ucrânia”.
Esse reconhecimento levantou uma onda de indignação em Moscovo, que foi aproveitado pela propaganda russa para mostrar a “imoralidade total” do Ocidente. A “virgem” Maria Zakharova, porta-voz da diplomacia russa, reagiu com emoção: “O facto de estes países, de estes políticos terem enganado a comunidade mundial, e em primeiro lugar o povo da Ucrânia, exige uma constatação obrigatória no espaço jurídico. Não se deve ficar simplesmente por conversas, mas os juristas devem qualificar isso, pois eles enganaram o Conselho de Segurança da ONU”.
No fundo, ela queria acusar o chamado Ocidente de ter copiado a justificação norte-americana para invadir o Iraque em 2003.
Guerras no Kremlin
Porém, o Kremlin não conseguiu manter por muito tempo o papel de “vítima” de mais uma “manobra traiçoeira” do Ocidente. A 16 de Fevereiro de 2023, Vladislav Surkov, antigo membro da equipa de Putin que participou na elaboração do documento, veio também reconhecer que, no processo da elaboração do Acordo de Minsk, os dirigentes russos também partiam do princípio de que as decisões nele previstas não eram para ser cumpridas.
Claro que Dmitri Peskov, porta-voz de Putin apressou-se a desmentir semelhante declaração.
“No início, em Moscovo não havia pessimismo sobre os Acordos de Minsk, o seu objectivo consistia em regularizar a situação”, afirmou ele, acrescentando, porém, que começou a surgir um certo pessimismo “na etapa final, quando vimos o real comportamento de Kyiv, Berlim, Paris, tornou-se evidente que eles tentavam alterar e substituir tudo, destruir a sequência da realização dos compromissos. Recordam-se que, então, a sequência era de importância crítica. Já então surgiu pessimismo”.
Tendo em conta o peso de Vladislav Surkov em todo esse processo, as suas declarações levantam questões desagradáveis para o ditador Vladimir Putin. Por exemplo, se o Kremlin sabia que os Acordos de Minsk não eram para ser cumpridos, porque é que se preparou tão mal para a invasão da Ucrânia?
Surkov foi afastado do cargo de conselheiro de Putin em 2020 e, segundo alguma imprensa russa, sujeito a prisão domiciliária em 2012, depois da invasão da Crimeia pelas tropas russas.
Porém, segundo as suas declarações dos últimos tempos, Surkov pretende regressar à actividade política.
Pode ver mais artigos do cronista José Milhazes aqui.