A RTP II passou esta semana um documentário muito curioso sobre os refugiados gibraltinos na Madeira, durante a II Guerra Mundial
Já perdi a conta dos muito bons documentários que vi na RTP 2. E, sem surpresa, o documentário transmitido há poucos dias, “Exílio no Atlântico” (2020) realizado por Pedro Mesquita, correspondeu à expectativa.
O tema é do conhecimento de poucos. Aborda a vida dos 2000 refugiados britânicos que, na altura da segunda guerra mundial, saíram de Gibraltar rumo à Madeira, onde ficaram durante durante esse período negro da história.
Primeiro, uma contextualização:
Gibraltar
Situa-se em Espanha, mas faz parte do Reino Unido desde o século XVIII. O território foi cedido aos britânicos depois de assinado o tratado de Utrecht, em 1713.
Nos séculos seguintes, a península do sul de Espanha – pertencente aos ingleses – cresceu bastante. Era um grande hub de embarcações que seguiam, maioritariamente, para o canal do Suez. Também no final do século XIX, Gibraltar viu nascer uma das mais importantes bases navais britânica, o que impulsionou a economia da região.
Na altura da segunda-guerra mundial, 1939 -1945, como pode o leitor calcular, Gibraltar tinha uma importância extrema a nível geoestratégico. Era uma autêntica porta para o mediterrâneo e norte de áfrica. Nesse sentido, o governo britânico enviou as suas tropas e viu-se forçado a deslocar e proteger a sua população, os gibraltinos.
Assim, em 1940, quando a Alemanha “dominava” uma guerra que se estenderia por mais cinco anos, milhares de britânicos foram obrigados e deixar Gibraltar. Alguns foram enviados para a Jamaica (antiga colónia britânica), outros para a Irlanda do Norte e alguns para Londres (talvez esta última opção não tenha sido a melhor).
Os mais afortunados acabaram por ser enviados para um pequeno paraíso (há que contextualizar): a Madeira. Foram 2000 e ficaram conhecidos como os Lucky Ones.
Funchal, Madeira
O Funchal era na altura muito pobre. Essa é uma das primeiras notas que os entrevistados dão conta. Apesar de alguns, à data, terem menos de dez anos, todos lembram um certo nível de pobreza que se testemunhava na ilha portuguesa naquele inicio dos anos 40. À pobreza junta-se também um grau de ignorância complementado por um enorme conservadorismo.
Num outro ponto menos positivo, todos dão conta da censura. Sim, a correspondência que se fazia entre a ilha e o Reino Unido era controlada. Contam os entrevistados que o controlo era de tal maneira escandaloso, que, por vezes, os parágrafos deixavam de fazer sentido. Outros falam mesmo em papéis rasgados.
Mas todos, sem excepção, falam do quão maravilhoso foi viver no Funchal. Evocam a maneira digna com que foram recebidos pelos portugueses e como o governo os ajudou, dentro das possibilidades, a estabelecerem-se de maneira confortável. Na verdade de tal maneira que, algum tempo depois, abriu naquela ilha uma escola para os refugiados britânicos onde aprendiam inglês, francês e português.
Os entrevistados falam ainda do sorriso dos portugueses e da maneira intrigada, mas generosa, com que os recebiam.
Lembrando-nos que, apesar das excelentes condições em que estes gibraltinos se encontravam no Funchal, o Reino Unido travava uma guerra mundial repleta de sacrifício e sofrimento, um dos entrevistados – talvez o mais velho – conta uma história de esperança belíssima. Diz mesmo, antes de a contar, que foi a partir daí que começou a ver os dois lados da vida.
Diz então que num dos bombardeios alemães aos britânicos em pleno atlântico, um jovem inglês sobreviveu e naufragou, tendo sido encontrado em solo português completamente desidratado e praticamente sem vida. Este jovem acabou a ser tratado no hospital do Funchal.
Naquele tempo, continua o interlocutor, era comum as refugiadas gibraltinas mais jovens ajudarem no hospital feridos de guerra. Uma dessas jovens acabou a tratar este rapaz de sorte. De sorte porque sobreviveu e, de sorte, porque encontrou a mulher da sua vida acamado num hospital do Funchal, numa ilha no meio do atlântico, a meio de uma guerra mundial. Sim, ele viria a casar com uma das jovens britânicas que dele cuidou.
Mais não conto porque vai gostar imenso de ver este documentário, “Exílio no Atlântico” realizado por Pedro Mesquita e que está previsto passar de novo na televisão no dia 9 de Outubro.
Se muito de especula acerca da postura de Portugal durante a segunda guerra mundial, esta história dos Lucky Ones é uma boa prova da grandeza da diplomacia nacional numa altura da história tão conturbada.
Este artigo foi escrito por Bernardo Mascarenhas de Lemos